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sábado, maio 30, 2015

CRÓNICA DE UM INTENSO DIA DE UM ALFACINHA POR LISBOA


Hoje, acordei naturalmente ou fui acordado por ele, o relógio, que me fustigou contra a ditadura das regras horárias do descanso. O meu Swatch, não é um companheiro silencioso mesmo pousado na mesa de cabeceira a meio metro do ouvido mais distante, e portanto logo que eu “acorde” é bem audível o seu tic tac, e aquele barulho indicativo da sequência de unidades de tempo que se vão “perdendo” é mesmo incompatível com as regras de um bio ritmo decalcado de um qualquer manual regulador de ditas necessidades básicas. O tempo, com vento ou não, foge, vai-se mesmo esgotando, e se não temos forças, ainda vá lá que nos deixemos escravizar pelas convenções biométricas que comparam homens com bácoros, mas se o descanso se tornou afinal irmão da preguiça, há que procurar, olhar, imaginar saltar, correr, falar e dar resposta ao que o Universo reclama de nós enquanto tivermos conversa para lhe dar. A Terra, é mesmo tão imensa e tão rica de informação, que se um metro quadrado de horizonte com trezentos e sessenta graus de ângulos de visão disponíveis encerra um sem número de seres vivos visíveis e invisíveis, antão devemos conformar-nos com as condições que temos ou não para os apreciar com a maior ou menor das definições que o estado dos nossos cristalinos permita.
Um dia destes, percebi que não só tinha mesmo envelhecido muito, e isto tem o valor que se lhe queira atribuir, pois depende das escalas que aceitemos aplicar, como também esta Cidade onde vivi a maior parte da vida começa a ser difícil de (re)conhecer já que os hábitos(rotinas) que fui criando desestruturaram-me os gestos e agora parece que a estou a ver pela primeira vez. Já não sei de cor a forma de percorrer a Cidade usando os transportes públicos para fazer “longos” percursos, e se os usamos não temos calma para olhar os mapas afixados nos abrigos das paragens de autocarro, porque há painéis que nos informam quantos minutos faltam para a chegada das carreiras que param naquele local, e há que aproveitar logo o próximo, senão ficaremos ali parados a “perder tempo”. Entrei no primeiro que logo chegou, sem bilhete, uma peça já de Museu, mas com a ajuda de uma cartolina verde que encerra um mealheiro virtual e que ilumina uma luzinha verde no dispositivo que impede as borlas pois já não há plataformas com estribos que permitam cabriolices a rapazes traquinas, e percorridas algumas paragens, o condutor aconselhou-me a mudar de carreira pois a distância para o destino que pretendia alcançar ficava “longe”, eram umas três paragens.
Saí na paragem indicada, mas acertei comigo ir a pé, e começou então a caminhada percorrendo e apreciando a “cidade desconhecida”, afinal apenas uma rua onde tantas vezes tinha passado velozmente em cima de qualquer umas quatro, ou mais rodas. Abriram-se os planos circulares do nosso campo visual, que fácilmente transformamos em rectângulos mentais e os procuramos fixar com os formulários binários guardados em silêncio no aparelho digital que me acompanhava. Além do uso da vista, o nariz foi fungando com os pólenes, e o ouvido sujeito a uma nova experiência com os diálogos que ao longo dos passeios se travam entre conhecidos e desconhecidos, ou mesmo meia dúzia de palavras que se escapam pelo vidro aberto de um automóvel debitadas quiçá pelo clima de agressividade que a sociedade actual promove. Mas também o “impropério” entre dentes de um velho sentado num muro que ao passar de um casal de turistas orientais, disse bem alto – “ Oh chinês, já cã não voltas outra vez!”. Durante aquele curto tempo a pé, fui relembrando parte da Cidade, mas acima de tudo, muito do que se foi perdendo em vida e património edificado em boa conservação, seja ele público ou privado em mãos nacionais, à espera dos leiloeiros de ilusões imobiliárias.
Até atingir o Génesis, tropecei em muitas enormes e austeras casas fechadas, e lá chegado, num Torreão de ecoarias estavam relatos de alguém que conseguiu formas de ir onde um número tendente para infinito de seres humanos nunca “irão”, e que nos choca com a realidade de, por exemplo, 2008 em que há gente neste Planeta que o julgam ser o Universo, embora com tantas luzes nos céus em que o Sol é apenas uma mais forte e a Lua é um ser adorado, ou quem sabe um interrogado Deus. Quando mergulhamos num ambiente a preto e branco, e em vez do desejado ambiente de silêncio rodeou-me o barulho brutal das visitas guiadas para a juventude, onde o que fazia falta era uma banda sonora apropriada para amortecer aqueles ruídos que retiravam a capacidade para apreciar o sentido de alguns contrastes entre o preto e alguns dos cinzentos, ainda mais após ter uma hora antes percorrido sósinho, em silêncio absoluto, as salas coloridas pelas pinturas de Josefa de Óbidos que não motivarão o interesse à visita dos jovens, embora Sebastião Salgado pratique uma arte que não estará certamente no futuro próximo ao alcance de nenhum deles.



No regresso, percebi que as carreiras de autocarros não fazem hoje os percursos que as rotinas do passado automatizaram no meu instinto, para serem mais rentáveis vão mais longe, e há uma que me trouxe sentado ao ponto de partida. 
No fim do dia, ao preparar-me para fazer o seu balanço, soube pela web da morte de alguém que conheci bem, que era muito Amigo de alguém do meu círculo restrito de Amizades, e quase “tão velho” como eu, mas que a “lei” não quis dar tempo para ser Avô. Então, senti a importância que tinha sido ter tido um Avô, e as consequências da formação que ele me deu no que havia acabado de aproveitar desde que tinha decidido “acordar”.
Por tudo isto, hoje não podia ficar a ouvir o Swatch martelar no meu ouvido “ecofénico”, e levantei-me para não me esquecer do que aprendi um dia destes, e partilhar os seus ensinamentos, pois é isso que devia acontecer a cada somatório de cada grupo de oitenta e quatro mil e quatrocentos segundos.   

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