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sábado, dezembro 31, 2011

A intimidade com a Arqueologia



“Recomendam os sábios que se espere, e o curso imperturbável dos rios arrastará os cadáveres das ideias que nunca foram”. Victor Santos Gonçalves (VSG), Sítios Horizontes e Artefactos, 2003

 
Um pedaço de barro depurado, primeiro amassado, a seguir manipulado, mais tarde muito bem cozido em ambiente fechado, e por fim servindo já como artefacto utilitário, mesmo com milhares de anos de “vida” não é suficiente para com ele, a seu propósito se escrever um livro de ficção, mas é um excelente ponto de partida para, estudar, alinhar algumas centenas de palavras, cozinhar ideias com imagens.




Regresso ao convívio com os artefactos “mudos”, para mostrar que alguns deles, de uso comum, apesar de não serem capazes de só por si “contarem” a história de todas as suas vivências, transportam consigo, além de meros planos estéticos da criatividade dos “Povos do Sudoeste”, marcas de alguns dos símbolos mais fortes de um estado sentimental, ou talvez de uma “cultura” de envolvimento com o sobrenatural.

"Archaeological materials are not mute. They speak their own language. And they need to be used for the great source they are to help unravel the spirituality of those of our ancestors who predate the Indo-Europeans by many thousands of years." Marija Gimbutas

Compreender mesmo qualquer artefacto que tenhamos na mão é uma pura ilusão; eles são apenas uma representação espacial e nunca é possível descodificar toda a sua roupagem invisível que se foi perdendo de mão em mão, de uso em uso. Estes subjectivismos, aplicam-se à caneta que uso agora, com um fantástico perfil que se acomoda na perfeição aos meus dedos e à minha forma de pegar e com ela rabiscar o que estiver à mão, seja um bloco, um cartão irregular em papel cartonado sobrante da guilhotina, a face lisa de uma concha. Todas as canetas, balanceiam entre os nossos dedos e podem ser um precioso auxiliar para transpor pensamentos se não constituirem um obstáculo que perturbe o correr da mão distraindo o discurso, e por isso as mais íntimas e duradoras devem ser criteriosamente apuradas antes de as aprisonar-mos, o que não foi o caso desta última que gentilmente a dona de uma loja me ofereceu como complemento da compra de umas lembranças de Natal que anos atrás minha Mulher escolheu para as nossas Filhas e Sobrinhas, e que hão-de, quem sabe, servir para mais tarde actuarem como artefactos “mudos” em outras conversas. A procura das experiências de “vida” dos artefactos arqueológicos será talvez para sempre um passo, e um meio, importantes para se perceber a organização social onde estiveram inseridos, mas conquistado a pouco e pouco quase todo o terreno do artefactualismo, é preciso seguir em frente na interpretação da paisagem das ocupações préhistóricas e na determinação cada vez mais fina dos seus calendários.


Este fragmento da extremidade de um crescente, encontrado nos arredores de Serpa, à superfície da folha de sequeiro intensivo onde se “situa” a estação arqueológica nomeada por S.Brás3, tem todas as características para ser envolvido com as placas de xisto e os ídolos cilíndricos em mármore lisos, ou com representações oculares mais ou menos estilizadas, no conjunto dos objectos símbólicos que eram decisivos para a sustentabilidade emocional dos povos que habitaram as Margens do Guadiana. Neste mesmo descontexto arqueológico, também foram encontrados, um betilo incompleto cilíndróide em calcário, escassos fragmentos decorados de placas de xisto e fragmentos de outras possíveis representações simbólicas em osso e em pedra.

A minha prolongada convivência táctil com milhares de fragmentos de crescentes desde o ambiente de deposição milenar até à sua limpeza, avaliação tridimensional e participação em algumas fotografias e desenhos, permite poder sustentar que na apreciação da sua elaboração encontro-os compagináveis com o total domínio da tecnologia barrista que preparava as melhores pastas e formas dos vasos do neolítico, e por isso este fragmento decorado tem um adequado enquadramento no seu raríssimo aproveitamento como suporte para um modelo ideotécnico. Que eu saiba, só em Porto Torrão José Arnaud mandou analisar pastas cerâmicas para poder concluir do seu fabrico local, e num ambiente descontextualizado como a superfície de S.Brás3, isso está e estará fora de questão, e assim a origem deste crescente “decorado” será sempre uma dúvida que abrange também o ambiente da sua possível sacralização.
Alguns investigadores, como é o caso da Dra Maria da Conceição Monteiro Rodrigues (MCMR), defendem que as raízes do simbolismo do nosso neolítico final e do calcolítico na expressão mais corrente da “Deusa com grandes olhos que tudo vê”, derivam da influência de um povo de pastores, constituído por conjuntos de tribos semi-nómadas originários da região entre o Volga e o Ural, os “Kurgan”, em cuja raiz cultural presidia a temática solar, seu símbolo sagrado. Propõe aquela investigadora que, as práticas funerárias do calcolítico Ibérico foram contaminadas pelas influências orientais, atendendo ao facto de em turco, kurgan significar, “tumulus”, o mesmo que montes artificiais circulares onde se enterravam os mortos, e todos os ídolos de calcário e as falanges votivas de cor clara e exclusivas do Sudoeste Peninsular, terem sido encontrados em estruturas tumulares do tipo tolos e em povoados do calcolítico. Existe uma convicção generalizada entre os investigadores Ibéricos que estudam o ambiente calcolítico, estarmos em presença de uma sociedade já estratificada socialmente, com uma elite guerreira dominadora de artesãos, pastores e agricultores, em que a Mulher teria um papel secundário, e por isso MCMR, julga não ser adequada a associação entre as representações oculares e um culto do feminino, embora Marija Gimbutas uma investigadora Lituana refugiada nos EUA após o domínio Soviético, tenha uma visão diferente e tenha numa obra pesada e rica com a Mulher em primeiro plano, com base em interpretações de contextos funerários do centro da Europa. MCMR concretizou as suas conclusões atribuindo aos ídolos cilíndricos “uma dupla função, em resultado de duas ideologias opostas:
1. The light colors representing the death of the sedentary agriculturalists.
2. The shape changed from female figurines, to cylinders which represent probably, a male figure. In fact, the ideology of the Kurgans based on a chiefman did not allow them to accept one female figure as a divinity."


Da tabela de MCMR para simbolismos decorativos, destinada a construir uma base de dados sobre a generalidade dos ídolos calcários de Portugal, podemos extrair que no crescente de S.Brás3 estão impressas as representações das tatuagens faciais.
Para além dos crescentes e das placas alongadas também têm sido encontradas em alguns povoados placas quadradas em barro com quatro furos, um em cada extremidade, mas com uma espessura muito maior (pelo menos o dobro), que se julga estarem também envolvidas nos processos de tecelagem e alguns conjuntos apresentam-se decorados “simbolicamente” como ocorreu no Povoado de Vila Nova de São Pedro.


Neste caso, é interessante o texto publicado pelos Arqueólogos (VSG, me perdoará que assim os nomeie…) que “dirigiram aquelas escavações”, Eugénio Jalhay e Afonso do Paço, publicado nas Actas e Memórias de la Sociedad Española de Antropologia, Etnografia y Prehistoria em 1945, onde a dado passo escrevem que, “ Placas de barro – Estes objectos, sobre cuya utilización no están de acuerdo los prehistoriadores, presentam hasta ahora un área de dispersión muy limitada en el centro de nuestro país y en el SE de España, siendo un elemento más de afinidad entre estes dos ciclos culturales. F. Alves Pereiras, que com V.Correia y outros las tiene por pesas de telar, presentó un ensayo de classificación basado en las formas quadradas y oblongas y en el número de orifícios de que están provistas. Com todo en la localidade de que nos ocupamos faltam las formas oblongas, a no ser que califiquemos así la del fragmento de barro imperfectamente definido da la fig. 11, núm. 8. Tambiém aqui son raríssimos los ejemplares com dos orifícios (fig. 12, núm. 3).
Los arqueólogos han llegado a la hipóteses de que sean pesos de telar basándose, por analogia, en algunos grabados antíguos de Tebas e de Beni-Hassum, en el vaso de Chiusi, em que está Penélope delante de su telar y outro en que Circe deja de tejer para dar de beber a Ulisses.
Se dice que se usarian cada vez dos orifícios de los cuatro, quedando los outros em descanso. Apoya estes hipotisis el echo de que en algunos ejemplares sólo los dos orifícios de un lado presenatam señales de haber sido utilizados, mientras que los otros se ve que non han servido.
En Vilanova se recogieron muchos cientes de placas; entre enteras y rotas, cerca de mil. Muestram generalmente los cuatro orifícios sin señal alguna de uso, siende raros los ejemplares en que se puede observar el desgaste producido por el paso de un hilo. En este caso tendríamos que admitir en este castro un centro importante de industria cerâmica, pero no têxtil, lo que tal vez no corresponda mucho a la realidade.
La suposición de que sean elementos de hornos de fundicion nos nos parece muy aceptable. Hay también quien las considera como piezas para retrocer fibras, que logo se usarian como cuerdas. Pero otros autores las llaman solamente “objectos de uso indeterminado”.
No siendo unânime la opinión en quanto al empleo de estas placas, nos permitimos hacer constar que en los palafitos de Europa central, done existió una importante industria del lino, según vários autores, no se há encontrado ninguna de estas placas que seria pesos de telar, y si sólo fusayolas.
Outra nota curiosa de estos objectos es su ornamentación, pues muchas placas de Vilanova de San Pedro tienen gran variedade de dibujos que presentam enorme semejanza com otros, tanto cerâmicos como pictóricos del neo e eneolítico y principio del bronze. Comencemos nuetro estúdio por las figuras zoomorfas...
… El núm. 19 de la misma figura es notable por parecerse al tatuaje facial de la figurilla de barro de Pedra de Ouro , e a los cilindros de calcáreo o de barro antes referidos procedentes de este mismo castro e de otras localidades.

Em Vila Nova de São Pedro, para além de algumas placas quadradas com quatro orifícios, apresentando-se decoradas com motivos solares também foram encontradas ídolos cilíndricos em calcário, mas talvez que estes factos não permitam associar o “castro” com a tese das influências orientalizantes sugeridas por MCMR, até porque as teorias e análises factuais entretanto publicadas sobre uma visão alargada da evolução das estruturas “sociais” no nosso actual território no períodos entes o 5º e o 2º milénios centram-se fundamentalmente na organização social, na leitura dos espaços territoriais e na organização física dos povoamentos, e só Catarina Soares, Mariana Diniz e VSG, pelo menos, têm uma preocupação numa intrepretação artefactual para além do horizonte e na teorização da dúvida metódica.


Vila Nova de S.Pedro

Este "crescente votivo" de S.Brás3 encerra ainda como outra característica muito particular e invulgar, a sua secção oval alongada, com um eixo transversal com dimensão próxima das placas alongadas, factor essencial para criar um palno onde a decoração foi impressa, sendo importante referir que no contexto dos achados superficiais de S.Brás3 não foram encontradas placas quadradas semelhantes às de Vila Nova de S.Pedro.
Reconheço que exagero no conceito "votivo" mas arrisco-o, sendo certo que sobre a sua função de peso de tear existem alargados concensos, e não sendo possível "datá-lo", não deixa de ser compreensível a sua analogia com um outro "peso de tear" da Europa Central que MG publicou, embora com uma aparente "distância" no calendário e nos meios com que medimos os tempos.




Cada achado “mudo” como este, pode ser mais uma peça para desajustar uma teoria ou contribuir para encontrar no futuro novas abordagens das influências exercidas por cada um dos agentes que intervieram nas transformações ocorridas no Sudoeste Peninsular entre os terceiro e o segundo milénios, sendo certo que, transpondo Pessoa, continua a ser mais sábio  sugerir que só sabemos que pouco sabemos sobre o que de mais importante nos antecedeu na préhistória.

Lisboa, Tavira, Dezembro de 2011
 








 

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