Nascido o dia, constatado que o mostrador do relógio da Cidade havia rodado de 13 para 14 tal como o swatch que trazemos no pulso, depois de uma noite em que a tempestade atingiu com brutalidade muitas localidades na Toscana, a luz rompeu durante algum tempo os castelos de nuvens, e era imperativo tomar balanço para voar até aos planos que só algumas aves dominam,
embora no ápice que decorre entre subir e descer exactamente um número (mágico?) de quatrocentos degraus, e fazer durante o tempo “contado” para permanecer na “verga”, alguns dos planos que se guardarão em velhas caixas de folha, como as bolachas mais preciosas, apeteceria ter parado para tomar logo notas escritas do conjunto de imagens que não cabem num cartão de memória, não fora a ausência de espaço na imbricada escadaria que tínhamos pela frente.
O começo da aventura pela escadaria acima construída com tijolo burro, a matéria prima com que quase todos os edifícios da Cidade foram edificados, foi a parte mais desconfortável para gente da minha estatura, mas tudo amainou talvez passados cerca dos primeiros cinquenta degraus, quando a implantação da escadaria fica mais ampla e deixando de se restringir a um apertado túnel em caracol quadrangular, com algumas estreitas frestas de vez em quando, por vezes no extremo de um nicho habitado em alguns casos por pombos que conseguiram romper as redes e as pontas de aço aguçadas que protegem muitos beirais e algerozes, surgindo já alta a primeira das 3 plataformas intermédias, com janelas bem rasgadas, que não apenas oferecem pontos de observação cardeais abertos sobre ângulos fechados dos bairros citadinos, com cada vez mais horizonte, mas também iniciam o retempero dos ritmos cardíacos dos escaladores.
Quando se atingem os terraços quadrangulares, logo se observa que um dos seus centros acolhe o sino difusor da hora que regula a vida dos senesi, e se constata que ecoando o som por todo o casario envolvente, como já o tínhamos sentido da janela do b&b onde pernoitámos (no 208, tal como havia acontecido em Napoli!), para quem estava ali tão próximo fê-lo de forma suave, clara e confortável. O sino maior que Siena chama de " Grande Bell", mas também chamado de "Resumo" porque dedicada à Virgem Maria, data de 1666, após várias tentativas frustradas de fusão, instalado inicialmente após o fim da peste que atingiu a cidade em 1348.
Depois do primeiro abanão visual, e uma ávida primeira volta de 360 º para se estabelecer o sentido na busca pelos recortes de cada conjunto aleatório de edifícios, e depois pelo detalhe dos Pallazi que mais se destacam e foram residência dos dominadores de cada bairro, começou a contagem mental do tempo “autorizado” para a nossa permanência no cimo de um dos mais espectaculares miradouros citadinos, pela relação tão equilibrada que potencia entre as distâncias que a vista humana pode alcançar com uma aceitável nitidez.
A Torre del Mangia, cujo recorte se aprecia de longe por entre as frestas das ruas estreitas ou debaixo dos arcos dos vícoli que dão acesso à Piazza del Campo, tem 87 metros de altura, e é assim chamada porque entre 1347 e 1360 a Comuna entregou essa tarefa a Giovanni Balducci apelidado de "Mangia" ou "Mangiaguadagni", e durante algum tempo “tornou-se” no pára raios da Cidade pela atracção exercida pela carga metálica situada no seu cimo, de suporte ao campanário.
A sua silhueta simples de base quadrada, em que os quatro lados estão de acordo com os pontos cardiais, vai até cerca de 70 metros, e é então acrescentada por um quadro escuro fino, da qual nasce a primeira coroação, uma pirâmide invertida de mísulas em travertino branco. Esta primeira coroa insere-se sob a muralha que ostenta dois brasões de armas do município e um leão rampante, além de lupe-escorredor nos cantos. Esta última parte da Torre é o trabalho de Agostino di Giovanni, escultor Sinesi, sob projeto por Lippo Memmi.
A Torre del Mangia não foi apenas um monumento e símbolo majestoso do poder, pois terá sido um contributo útil para a vida citadina, com o grande relógio implantado em 1360 na primeira metade da torre, logo acima do terraço do Palazzo Pubblico, relacionado directamente com os sinos que pontuaram a vida da cidade, e foi sempre um símbolo de autoridade e de poder da República de Siena, tendo a sua construção resultado da necessidade em encontrar um local justo e digno para os sinos do município, até então colocados na torre hoje inexistente do Palácio Mignanelli, e mais tarde no campanário do Duomo. A última significativa intervenção foi em 1804 com a inserção da data no relógio pelo sinese Giovan Lorenzo Barbetti, e finalmente uma restauração em 1963.
O que se podia ver e “apanhar na mão” do alto da Mangia, e agora partilhar, dependeu em muito da evolução das instáveis condições meteorológicas que em segundos desenhavam com algum detalhe os planos próximos, ou logo com o bater do sol a evaporação de alguma humidade acumulada durante a noite transformava os horizontes mais distantes em cores difusas e complexos recortes. Lá do alto, não se reconhece logo a sua cota paralela ao do Duomo, mas sente-se o poder e a autoridade simbólica da grandeza do Palácio .
Sem comentários:
Enviar um comentário