Nos últimos trinta anos mantive uma
relação íntima com a superfície de cerca de um hectare integrado numa folha de
sequeiro intensivo nos arredores de Serpa. Desta relação, algumas vezes
partilhada com a Maria, mas na maior parte “extraconjugal”, nasceram
incontáveis frutos. De repente, neste fim de Setembro de 2013, quando
esperávamos por mais um encontro a três, e fomos lá ver se o estado das
culturas faria com que isso fosse possível para breve, deparámo-nos com um
horizonte que já não era como dantes, e aquela grande companheira de desabafos,
confidente de segredos, curadora do stress da vida citadina, parecia estar
prestes a romper com a nossa relação, e a guardar a sete chaves os inúmeros
segredos que sempre procurámos decifrar através dos sinais na sua epiderme.
Sabemos que um dia isto poderá
acontecer, ou por causa de uma mudança nos seus hábitos de vida, ou quando os
nossos corpos perderem a ligeireza para caminhar sobre torrões e não se
conseguirem já dobrar para manter o nariz no chão, durante pelo menos um hora
seguida.
Pois a razão daquele acontecimento, é
aquilo de que pouco se fala, e não se valoriza, porque a chamada Comunicação
Social não gosta do principal impulsionador final, responsável pela extensa
malha aquífera entubada desde Alqueva que se vai espalhando pela Alentejo e já
chega às faldas da Serra de Serpa. As searas de trigo, de cevada, de grãos e de
girassol, vão a pouco e pouco deixar de habitar por ali, expulsas por olivais
de exploração intensiva ou pelos milhos genéticamente modificados.
Ainda lá voltámos ontem àqueles espraiados
campos agrícolas, para documentar a explicação para aquele considerado “súbito
e triste abandono”, mas as imagens já não correspondiam às de quinze dias atrás
pois o milho já tinha sido ceifado na metade da folha, e na outra metade,
aquela onde os vestígios arqueológicos são mais evidentes, a grade de discos
já lá tinha passado e produzido os brutais e habituais estragos sobre os
materiais arqueológicos atingidos pelas lâminas aguçadas!...
Afinal, talvez não seja portanto a
última vez que passamos os olhos por este campo lavrado ou acabado de semear,
que cobre um dos polos da ocupação pré-histórica de S.Brás, e que,
propositadamente ou em passagem para o Guadiana em próximas acções de
levantamento dos seus Moínhos reencontremos um solo em condições de permitir
que as histórias que a superfície conta não possa deixar de ainda ser tentada
perceber. As centenas de horas que ali passámos estão diminutamente
documentadas com imagens, pois o transporte das máquinas fotográficas não era
própriamente amigável e compatível com apenas duas mãos que tinham de segurar a
pequena espátula, os sacos de plástico que iam recolhendo os “cacos”, e tantas
vezes também o chapéu de chuva, e as mochilas ligeiras são puras modernices.
Aceitaremos com naturalidade quando se
concretizar algum dos “contratempos” que nos venham a impedir de no intervalo
entre as culturas ir até S.Brás3 para respirar ar puro, sorver os horizontes
que nos namoraram dias a fio, experimentar a emoção do encontro com algum “novo
caco”, mas também julgamos que está a começar a chegar a hora de se “arrumarem os
materiais” para que alguns dos sacrifícios que ali fizemos na entrega à
prospecção arqueológica de superfície tenham o devido retorno para quem
continua a teimar em aprofundar a compreensão sobre o desenvolvimento das
culturas pré-históricas, sendo importante explicar que todo o trabalho de campo
ocupou muitíssimo menos tempo do que as tarefas que, era e é, necessário
desenvolver depois, nas lavagens, limpeza, desenho, marcação, fotografia, arquivos e escritos.
Fazer um balanço de trinta anos de cacos
em S.Brás3, é fácil do ponto de vista da descrição material, com um exemplo da
minha própria rotina anual, e até seríamos capazes de ir indicar no terreno o
ponto aproximado de cada um dos mais importantes “encontros”, mas já é
impossível aproximar das letras muitas das emoções associadas às descobertas de
maior significado arqueológico.
A morfologia do terreno, foi-se alterando ao longo dos anos, com a acção recorrente da maquinaria agrícola cada vez mais potente, e aquilo a que chamaria de plataforma inicial, onde se terá situado o núcleo central do povoado, que para sul tinha um pequeno e muito bem marcado desnível, foi-se transformando num único plano ligeiramente inclinado em três direcções. Para além das transformações morfológicas que decorreram da actividade agrícola, dois acontecimentos merecem ser referidos; o primeiro, na zona em tempos mais marcada com a cota mais baixa, após as enxarruadas a seguir à ceifa foi o aparecimento expontâneo de um buraco circular com cerca de três metros de diâmetro e um de profundidade, que talvez pudesse indiciar o local de uma fossa ou de algum poço de acesso a algum filão cuprífero, numa área da folha em que os vestígios arqueológicos pré-históricos se misturavam com alguns materiais romanos, e o segundo foi o atravessamento de um linha de alta tensão que hoje parece ter influência sobre a actividade agrícola de regadio, e que na altura da implantação das sapatas dos postes provocou uma nítida intrusão em alguns planos arqueológicos. O progressivo nivelamento do terreno protegeu alguns níveis arqueológicos, mas noutros aproximou da superfície os materiais mais densos que presumidamente viveram no fundo das cabanas, como foi o caso das mós dormentes que foram sendo retiradas para locais incertos pelos trabalhos agrícolas, desaparecendo da superfície porque afectavam as lâminas das charruas, e que dado o seu peso não era possível para nós fazer o seu transporte e apenas fomos arrastando as mais leves para junto dos postes de alta tensão, de onde a pouco e pouco também se esfumaram.
Neste curto balanço, também nos lembramos
de alguns dos sucessivos proprietários e de alguns dos trabalhadores rurais
mais estáveis, com quem travámos muitas conversas não apenas sobre a sua
actividade profissional e de onde extraímos muito ensinamento sobre formas de
vida e de sobrevivência, mas também sensibilizando-os para o interesse no
estudo da pré-história local, e procurando a sua atenção para a salvaguarda dos
seus sinais, e ainda os encontros e conversas curtas com os pastores dos
rebanhos de ovelhas que produzem o leite apaladado que é responsável pelo
melhor dos nossos queijos.
De ontem, aqui ficam as imagens de
alguns objectos líticos que estavam por lá nos sítios por onde passámos, e que
tivemos a sorte de não os deixar de ver, e sobre S.Brás3, tão breve quanto
possível, publicaremos, imagens e textos sobre artefactos líticos, cerâmica
decorada e “pesos de tear”, correspondendo aos três vectores principais dos achados
de superfície.
E ficam ainda imagens de Serpa à roda da
tasca do Engrola, a propósito do almoço, onde recuperámos os sais necessários para
chegar a Lisboa, com a ajuda de um feijão branco com entrecosto e cogumelos
selvagens, uma cerveja e um arroz doce.
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