Santa Justa, foi um inesperado encontro, que projectou para 2015 a observação dos festejos de S.Pedro no lugar de S.Pedro de Solis no Concelho de Mértola. O tempo disponível para a viagem até S. Pedro de Solis revelou-se a dada altura incomportável dada a irregularidade do traçado da estrada que provem de Alcoutim, transformando uma “linha recta” de 20 km num percurso sinuoso de 28 km, e uma placa deixada para trás na estrada antes de Martim Longo com a indicação de um “centro museológico” foi a alternativa de impulso para aproveitar os kilómetros já percorridos desde Tavira pelo IC 23, embora num salto até ao desconhecido.
As imagens rápidas captadas em Santa Justa, procuram enquadrar o Povoado naquilo que do ponto de vista urbanístico se nos depara na maioria dos actuais aglomerados humanos do interior profundo dos Concelhos de Mértola e de Alcoutim, outrora preenchidos por todos os estratos etários e hoje reduzidos aos dos mais idosos que não podem ou não querem viver o resto da vida deslocados para novas realidades diferentes daquelas a que se habituaram, e onde afinal têm as suas raízes, memórias, alguns dos vizinhos de sempre, e contextos ambientais de onde ainda conseguem extrair algum complemento para o suporte básico de uma sobrevivência com o mínimo de dignidade.
Como me explicou uma habitante de Santa Justa, quando lhe fiz menção de ter notado e apreciado a quantidade de fornos espalhados junto das habitações nas ruas por onde tinha já passado, - “ já não há braços para amassar o pão, pois os jovens desabelharam daqui, e agora vem cá o padeiro todos os dias” - de Martin Longo? retorqui, - “ não, vêm dois padeiros, um de Martim Longo, e outro do Pereiro”.
Com as transformações ocorridas nas estruturas sociais, económicas e políticas nos últimos quarenta anos, e com o alargamento progressivo das redes de saneamento básico promovidas pelo enraizamento do Poder Local Democrático, a qualidade de vida das populações do Alentejo e do Algarve profundos modificou-se na substância e na exigência dos seus habitantes aos meios para se cumprirem os seus direitos básicos, pelo que não é já possível consubstanciar as paisagens dos fins do Sec. XIX e de mais de metade do sec. XX numa perspectiva de conceito avançado de museologia rural. Ficaram assim postergados para a história mais remota os tempos em que, por exemplo, com pompa e circunstância o poder central inaugurava um fontanário, mesmo em territórios de abundantes recursos hídricos, o que não é o caso destes territórios atravessados por algumas ribeiras com reduzidos caudais em longa exaustão e os seus leitos na maioria do ano cobertos com xistos rolados.
Estas populações, durante tantos anos isoladas do Mundo passaram a ter consciência de que lhes era pelo menos devido conseguir, em tempo útil, uma casa com outras condições de habitabilidade, que superassem as condicionantes estruturais seculares das habitações construídas por entre muros feitos com pedra solta de xisto, com as suas paredes também em xisto unido por argamassas de cal hidráulica, portadas rudes em madeira e coberturas de telha dita em canudo (genéticamente romano/árabe) assentes em caneiros sobre barrotes, o que teve como consequência uma alteração gradual dos agregados urbanos, onde hoje sobram ao abandono as “relíquias arquitectónicas” dos que partiram ou de quem não tem mesmo meios para acompanhar a “modernidade”. È bom não esquecer que para as estruturas urbanísticas dos pequenos aglomerados (Montes), salvo o xisto e os proveitos de alguns poucos canaviais de proximidade, tudo provinha de fora pois não havia floresta, os fornos de cal ficavam junto das Aldeias e as oficinas que além da olaria produziam telhas e ladrilhos eram nichos de conhecimento e portanto obras de poucos artífices isolados.
Por outro lado, nunca o processo de regeneração sócio-económico pós derrube do “Estado Novo” foi prospectivado para criar em simultâneo condições dignas da sobrevivência desenvolta, enquadrada numa conservação urbanística estruturada e visionária que suportasse a continuidade e afirmação de algumas profissões, e também mantivesse postos de trabalho activos que suportassem uma conservação coerente do património edificado. Em São Pedro de Solis vive hoje a Sra Vitoriana que é a última representante na região das fiadoras de lã, e quem para além de manter activas as metedologias e os processos de produção tradicionais alimenta a oficina de tecelagem artesanal de Mértola, cujos tapetes são hoje objecto de corrente reapreciação.
Com a utilização dos materiais de construção modernos, o que envolve a convivência do Património rural sobrevivente com a comodidade dos alumínios para todos os “gostos”, as portadas de madeira transformaram-se não só num apetite devorador para a intimidade com as objectivas, mas também num dos mais marcantes sinais da (des)”habitação” e do crescente abandono, ainda por cima desarrumado em consequência do desenho urbanístico primitivo. Neste processo de aculturação de outros estilos de vida, foram surgindo as janelas, que até aí práticamente não existiam por força do economicismo da pobreza, já que em alguns casos a pouca luz que entrava nas habitações provinha de uma ou outra telha de vidro, em princípio colocada sobre a zona de cozinha.
Como nesta região desértica a madeira era uma importação de luxo, em especial as tábuas aparelhadas, a sua utilização restringiu-se no essencial às portas que pela qualidade da matéria prima antiga foi resistindo até ao aparecimento das primeiras placas metalizadas e dos rebites manuais, de alicate. Apesar disto, em Santa Justa há uma habitação actualizada, mas com uma pequena cerca de madeira desaparelhada que desalojou da primeira fila os mais correntes conceitos metálicos ou marmóreos das vizinhanças (Imag. X), embora com alumínios no fundo da cena.
Os novos conceitos de desenvolvimento rural com vertentes culturais, anteriormente apenas apelidados de turísticos, privilegiam a consolidação confortável das estruturas interiores das habitações, procurando manter todos os traços exteriores, como que se trate apenas de um acto de rechear, mas nestes povoados teria sido muito negativo caminhar para a manutenção da policromia xistosa no exterior, e o enchimento interior das paredes já que as reduzidas dimensões dos compartimentos condicionariam um resultado final aceitável, e portanto é difícil estabelecer paralelismos com outras regiões do centro da Europa em que esse foi o caminho escolhido, embora sem sabermos adivinhar qual teria sido o resultado urbanístico nesta província se Portugal tivesse sido invadido pelos exércitos nazis durante as duas grandes guerras europeias de cariz militar, e tivesse no seu termo de enfrentar uma reestruturação social de continuidade sem algumas das roturas que hoje se reconhecem como essenciais para novos sectores de ofertas de serviços que criam alguma riqueza e novos, mas escassos postos de trabalho.
Qualquer que seja a óptica com que se observem as transformações das últimas décadas no Baixo Alentejo e o Alto Algarve profundos, encontramos identidade nas suas paisagens e nos seus povoados a qual se enquadra numa visão mais vasta e aprofundada nos resultados da sua ocupação nos últimos cinco milénios, e que realmente aporta contributos para uma discussão sobre o contraste com uma “Europa” cada vez mais distante dos anseios de cada um os seus Povos, mas também mais próxima nos acessos, com o que isto pode ter de negativo.
Regressando aos últimos quarenta anos de transformações sociais, políticas, administrativas e culturais, encontramos em Santa Justa um exemplo para o tratamento de choque com a nossa vivência daquele período, e Santa Justa, já não representa apenas o conjunto urbanístico que servia de ponto de apoio às actividades agrícolas mais primárias existentes durante a primeira metade do sec. XX e que justificavam o Alentejo profundo, decerto herdeiro distante de um modelo económico longínquo no calendário do tempo, pois assentou no “saque” dos recursos naturais, apropriação elitista dos seus proveitos, seguido do abandono e partida para “novas criações”, mas é hoje um polo museológico, e porque europeu, não serve apenas as memórias dos seus habitantes, alguns que tiveram direito à escola e muitos outros eternamente vítimas da política activa do analfabetismo.
De repente, nas últimas décadas, os burocratas da EU definiram projectos visionários a eito, atribuiram-lhes biliões de fundos ditos estruturais deformados pelo espelho da sua própria imagem, e que portanto não souberam olhar para a outra face da moeda em que se inscreve o algarismo do valor correspondente, e a crise financeira de 2008 destapou em definitivo as consequências mais preversas do primado ultratecnológico e da globalização, que os “estúpidos” teimavam em negar, mesmo quando em Espanha o desemprego já rondava os 20%.
Santa Justa, oferece-nos dois ambientes culturais bem diversos, o do centro museológico que nos propicia a visita a uma escola primária serrana onde está disponível com o maior rigor o ambiente existente nos anos 50, e a cerca de dois kilómetros as ruínas de um outro Povoado (Calcolítico) que garantidamente não configura uma relação de paternidade.
O Povoado calcolítico, conhecido pelo Cerro do Castelo de Santa Justa, é um notável sítio arqueológico perdido no meio das irregularidades territoriais, e que terá convivido com com outros sítios habitados próximos, no período florescente da exploração mineira decorrente da descoberta humana das técnicas de fundição, e o seu testemunho será aqui, brevemente, objecto da devida nota individual.
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