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domingo, julho 19, 2015

A primeira aula


Vão já bem longe duas semanas do outono de 2014, silenciadas, porque encobertas pelo ruído de tanta noite passada. As diversas responsabilidades pela vida fizeram-nos  pensar na possibilidade de fazermos a nossa pesquisa anual, e habitual, pelos torrões de S.Brás3, pois já sabíamos então que a folha de sequeiro intensivo tinha sido gradada, e depois disso já tinha caído alguma chuva que decerto tinha começado a “lavar” os poucos cacos que ainda vão conseguindo acimar por lá, sobrevivendo à agressão agrícola e atmosférica, e actuando em primeira linha no sucesso escritural de microns da nossa história sobre a pré-história naquele lugar. Em cada uma das duas etapas, atravessar os olivais centenários, errar uma hora e meia sobre os torrões, almoços de cozido de grão, e migas, em Serpa na Tasca do Engrola, comprar umas queijadas de requeijão, regressar a casa ao pôr do sol pela rota de Paymogo, recolher tudo o que a vista alcançou e aguardar pela ocasião ideal para partilhar as imagens; que os sentimentos vividos não são digitalmente transmissíveis. 

 
 
 
 

A extremidade distal ainda afiada de uma enxó em anfibolito quebrada no passado.
 
 
 
 

A extremidade de uma placa de barro ( peso de tear ).
 
 
 
 

 
 Um pequeno artefacto lítico, talvez votivo. 




A “rota de Paymogo”, mais ou menos paralela à fronteira entre Portugal e a Espanha, é o percurso mais seguro e cómodo para vir de Serpa até ao Sotavento Algarvio, pois embora tenha algumas curvas, mas muito largas, o tapete de alcatrão é impecável, e ainda se percorrem cerca de cinquenta quilómetros de rectas, desembocando-se na autopista que liga Sevilha à ponte sobre o Guadiana a quase 8km do tabuleiro que galga sobre o rio para unir a Ibéria. 

Há quem vá “conhecer” e fotografar o Mundo no Amazonas, na Patagónia, no Ártico, nas estepes da Ásia, e mesmo onde mais ninguém voltará, como faz Sebastião Salgado, mas nunca ninguém Conhecerá o Mundo nem mesmo com os pps das correntes das mensagens entre Amigos e desconhecidos. Sem falsas modéstias, depois de anos e anos sobre torrões molhados ou palhas secas, conhecemos mesmo uma parte de “S.Brás”, o à parte que o Mundo nos deixou perceber, afinal aquilo que o complexo arqueológico tem de sucessivamente revolto e exposto, ou noutro registo, o cheiro das amostras das poeiras que saem das tocas dos coelhos e enroupam o que ficou da ocupação humana de cinco milénios atrás.

Em cerca de meio século de tangência com a arqueologia, centrada na margem esquerda do Guadiana, vimos alteraram-se, paisagens, proprietários, metodologias de cultivo e calibres do grão das poeiras terrosas, vimos nascer cercas de arame farpado e modernos sistemas de rega, foram nascendo as duas gerações dos que ficarão com os meus slides, desenhos, livros, alguns cacos, que também herdarão algumas ilusões, e como os mais novos já têm capacidade para inaugurar uma competência que a escola não transmite, fomos a S.Brás, para poder dar a primeira aula de “arqueologia de superfície” a três das “minhas” crianças, as que as leis me permitem transportar no banco de trás do carro.
Depois de uma tomatada no Engrola, agora que o calôr afasta as migas, uma paragem de curtos minutos a meio de uma viagem de férias, para entre os 45º de braseiro sobre um campo de girassol, ensaiarmos a curtíssima introdução à descoberta do que pode fazer a relação estabelecida entre os olhares e a terra onde poisamos suavemente os pés. Cada um no seu rego, sem perturbar os pés de girassol que vão ficando cada dia mais torrados com as cabeças caindo-lhes envergonhadas, um pequeno saco na mão e olhos bem abertos para o chão, cincoenta passos para lá, mais cincoenta passos de volta pela fileira ao lado, para que chegados a casa se emocionarem com o “valor” da sua recolha.
Liberdade total; apenas ouve um conselho prévio – “apanhem o que vos parecer que não faz parte da natureza, e pode ter estado na mão do Homem”. 

 
 
 
 

 
 
 
 
 



 
 
 
 
 



Os três resultados! Três bordos de pratos almendrados, vários cacos indertemináveis, a extremidade de um crescente, fragmento de uma enxó, restos de ossos, e seixos com concreções calcárias. Para primeira e curta vez, foi muito “positivo”. Se já os progenitores seguiram outros caminhos, e tal como vemos o Mundo, esta experiência ficará nas memórias longínquas da infância com a cumplicidade deste registo e das suas imagens, mas poderá sinalizar caminhos para futuros projectos de investigação noutras ciências.




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