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sábado, agosto 24, 2013



Morreu recentemente Urbano Tavares Rodrigues.

Nunca comprei nenhuma das suas obras literárias, talvez que por razões imprevisíveis, ou outras inconfessáveis. Mas, apesar de nunca ter ainda decidido apreciar o seu discurso escrito, os nossos percursos terrenos tiveram algumas tangentes, as mais frequentes em “troca de ideias” sentados lado a lado em cadeiras da mesma barbearia onde ambos durante muitos anos estivemos fidelizados, até ela encerrar depois de atingida pelo grande incêndio que destruiu o velho Chiado, e cada um dos seus empregados ter ficado disperso por diferentes locais.
Correndo o risco de destapar a profundidade de algum texto romanceado ou friccionado de Urbano Tavares Rodrigues, não posso perder uma pequena e curiosa parte da minha memória que com ele se relaciona relatando mais abaixo uma curta história que não só ouvi contar, como pude constatar o seu contexto. 
Diz-se, que a morte de um ser humano é o equivalente ao desaparecimento de uma biblioteca, mas no caso do Urbano há uma parte da sua “biblioteca” que ele deixou dispersa por inúmeros documentos. Acredito que ainda venha a ser possível encontrar uma forma de transferir a informação acumulada no nosso cérebro para um registo físico, quem sabe se debaixo de hipnose, e evitar assim que as memórias dos acontecimentos mais importantes das nossas vidas, que avivamos e não escrevemos se percam para sempre, mas não vou ao ponto de acreditar na possibilidade da “transferência” de imagens, embora também seja bem possível que o nosso raciocínio se desenvolva relacionando informação residente em arquivos todos conservados, digamos que na mesma “linguagem”.
A paixão pela arqueologia, fez com que tenha passado horas incontáveis de nariz no chão numa pequena parcela de terreno mesmo junto ao Rio Ardila, um afluente do Guadiana, onde os trabalhos agrícolas de sequeiro intensivo entremeados com culturas de regadio faziam em cada ano aflorar os vestígios materiais de uma pujante ocupação humana ocorrida entre o Neolítico Final e o início do Calcolítico, parcela essa integrante da chamada Quinta da Esperança, propriedade da Família de Urbano Tavares Rodrigues. O local e quase tudo o que lhe era limítrofe, oferecia um leque quase inesgotável de formas ocupativas do corpo e da mente, como um belo pesqueiro no rio onde em Família pescámos achegã.
 
 

Se a ocupação pré-histórica assentou ali talvez pelas condições especiais oferecidas pela Natureza para a transposição das margens do rio, esse percurso prolongou-se nos milénios, e lá ficou implantada a estrada Romana que ligava Arucci (Moura) a Ébora (Évora), e portanto era exigível nessa época Romana a presença das “passadeiras” talhadas em grandes blocos de pedra, que permitiam atravessar o rio fora do Inverno, muito próximo de um presumível Monumento de culto Romano com vestígios há anos atrás ainda espalhados pelo solo. No local, mesmo junto às “passadeiras”, também foi edificada uma “atalaia” ou “burgue”, que se diz ter feito parte do sistema defensivo Lusitano face a Castela e cuja estrutura está muito bem conservada, e ainda a casa de um barqueiro dos tempos modernos que oferecia um atravessamento tripulado para a “outra margem”, como diria a canção.






Durante as inúmeras visitas à Quinta da Esperança, apenas conheci os seus Caseiros, umas pessoas simples e amabilíssimas, que sempre encontrei vestidos de negro, e que nos davam curtos abrigos das chuvas e dos calores, matavam-nos a sede, adocicavam-nos com uma bela laranja ou mitigavam as agruras das caminhadas com uma fatia de pão alentejano acompanhado de umas suculentas azeitonas.

Sendo o Ardila um Rio muito “velho”, as suas margens mostram os sinais das transformações ocorridas durante a sua longevidade, e a Quinta da Esperança incorpora toda essa singularidade, traduzida na qualidade das margens de aluvião, e nos terraços de cascalho onde se desenvolveu o olival. A propriedade rústica sólida e ampla era sóbria e estava implantada em dois núcleos, um habitacional e outro agrícola separados por um largo calçadão empedrado construído com seixos do rio. Como é normal nos Montes alentejanos, a residência dos caseiros fica na extremidade da dos proprietários e esta em frente das cavalariças e dos abrigos para as alfaias.

Como relato mais fiel, fica a história que os Caseiros  uma tarde me contaram sobre a Quinta ter servido nos tempos da ditadura para abrigo de pessoas perseguidas quer pela polícia política do regime, quer pelo exército franquista, consubstanciado num esconderijo existente por baixo do chão em mármore, numa ampla sala de jantar cuja entrada muito bem disfarçada se fazia mesmo ao seu centro por debaixo de uma grossa carpete sob uma enorme e pesada mesa em madeira, na qual a Família habitualmente comia em conjunto.
Até que Urbano Tavares Rodrigues e os Irmãos se desfizeram da propriedade e da residência temporária de Família, todos os Natais, partindo de Vila Verde de Ficalho, condicionados apenas pelo rigor do Inverno e portanto com maior ou menor dificuldade para percorrer o caminho entre Moura e Porto Mourão, assim “se chama” o sítio, íamos levar um Bolo-Rei àquela gente isolada do bulício das cidades, para além de nunca deixarmos de aproveitar uns minutos para dar uma vista de olhos pelos campos humedecidos. Campos esses, onde o Dr. Fragôso de Lima, um importante arqueólogo de Moura, havia reconhecido o contexto arqueológico neolítico e de onde segundo vários relatos recolheu largas dezenas de instrumentos líticos que terão feito parte do espólio das colecções que originalmente estiveram no núcleo expositivo da Biblioteca Municipal e que na transição para o novo Museu Arqueológico da Cidade diz-se terem desaparecido.
 






Foram anos atravessados e determinados pelas contingências da transformação social em Portugal, com constrangimentos incomparáveis aos dos tempos mais modernos, e agora o custo do registo de imagens que quase se reduz à aquisição de um equipamento, não se compara com os anos 70 do século passado, e portanto apenas posso enquadrar estas palavras com o que restou de uns diapositivos em tempos felizmente digitalizados, transformados numas poucas imagens, embora suficientes para quem conheça o local se situar no tempo, como será o caso de uma das minhas Filhas e de um Amigo, protagonistas de uma das fotografias. Dizia-se que a albufeira da Barragem do Alqueva atingiria as margens do Ardila junto à Quinta da Esperança, mas não tendo voltado lá depois da conclusão das obras não sei se isso aconteceu, mas se ainda puder rever este local de tão boas memórias, não deixarei esse registo perdido apenas na minha memória física, mas perecível.  



 

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