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sábado, outubro 17, 2015

A Reinstalação do Cromeleque do Xerez




Erguido cerca de 5 000 anos antes de Cristo por uma comunidade pré-histórica de agricultores e pastores, talvez num ritual de apropriação do vale cujo centro geográfico parecia assinalar; usado e reutilizado durante mais de mil anos como espaço de culto, magia e memória pelos descendentes dos fundadores; por fim, abandonado e esquecido durante milénios, o CROMELEQUE DO XEREZ, redescoberto quase por acaso há pouco mais de trinta anos, renasceria para nova mas fugaz vida em 6 de Maio de 1972 quando alguém fez reerguer sobre a cova original o grande menhir fálico. As pedras do Xerez, identificadas e ordenadas uma a uma num gesto típico da racionalidade do Século XX, transformadas de novo em memorial colectivo e marca territorial, recuperaram parte da magia original. Na sua singularidade formal e magnífico enquadramento, o Cromeleque do Xerez em breve conquistaria o papel de ícone cultural pré-histórico do Alentejo, conferindo ao vale que o acolhia e onde era procurado por numerosos viajantes e turistas, um encantamento muito especial. A 28 de Novembro de 2001, o grande menhir do Xerez foi de novo apeado e transportado para fora do vale com os restantes monólitos que o enquadravam. Num acto conscientemente assumido pela mesma comunidade que anos antes o recuperara do esquecimento, tal atitude anunciava nova e profunda transformação das terras do Xerez que perdidas referências que presumíramos quase eternas, rapidamente se viram inundadas pelas águas represadas do Guadiana.
Deslocadas e guardadas durante meses, as pedras afeiçoadas do Xerez encontraram poiso junto à Orada de Monsaraz e mais uma vez, em acto não isento de algum ritualismo, reerguidas à justa medida da intuição do seu redescobridor. Perdido, há muitos milénios, o seu enigmático contexto fundacional, o Cromeleque do Xerez (reinstalado) assinala a partir de agora, não apenas um território transfigurado pela insaciável vertigem humana de mudança mas uma nova e paradigmática simbologia memorial. De facto, enquanto única estrutura monumental que foi decidido salvar e recuperar do vale inundado pelo Alqueva, apesar da vastíssima operação de pesquisa arqueológica aí empreendida, a excepção do Cromeleque do Xerez, transladado e reerguido face ao grande lago, acaba por assumir no seu simbolismo telúrico e singularidade formal, um novo e solitário estatuto de monumento, à vez pré-histórico e contemporâneo, levantado pelos homens do Século XXI à mais remota memória histórica do inundado território de Alqueva.
Foi ano de 1969 que alguém, atento no aspecto e forma de uma grande pedra deslocada por trabalhos agrícolas na Herdade do Xerez (ou do Xarez), alertou José Pires Gonçalves, para a possibilidade de se estar perante descoberta semelhante ao menhir do Outeiro, grande monólito de forma fálica que pouco tempo antes aquele conhecido médico de Reguengos de Monsaraz, historiador, antropólogo e arqueólogo nas horas vagas, tinha identificado e feito reerguer no local do achado, próximo da aldeia do Outeiro. Ao proceder ao reconhecimento da nova descoberta, a Sul da colina fortificada de Monsaraz e no centro de um extenso vale aberto a Nascente sobre o Guadiana e a meio caminho entre os Montes do Xerez de Baixo e do Xerez de Cima, Pires Gonçalves teve oportunidade não apenas de confirmar a origem pré-histórica da grande pedra tombada, como de verificar que estava associada a um verdadeiro "ninho de menhires" deslocados e amontoados pela maquinaria agrícola. Conhecedor dos trabalhos de Henrique Leonor de Pina que na região de Évora havia dado a conhecer poucos anos antes os Cromeleques dos Almendres e da Portela de Mogos, Pires Gonçalves resolveu aprofundar o reconhecimento arqueológico dos achados do Xerez, tendo descoberto a estrutura de sustentação do menhir de maiores dimensões, bem como indícios das covas de implantação de outros. Considerando os dados observados, Pires Gonçalves interpretou o conjunto de meia centena de monólitos de dimensões variáveis, alguns afeiçoados e com gravações rupestres, como vestígios de um recinto megalítico pré-histórico entretanto desmantelado. Ao promover a sua reconstituição em 1972 e tendo em conta os resultados da sua própria investigação, viria a decidir-se por um quadrilátero, estabelecido a partir do menir central e com os lados orientados no sentido dos pontos cordiais, uma forma pouco comum e algo controversa mas de que são conhecidos exemplos similares no Norte da Europa. Apesar de Reguengos de Monsaraz, graças aos estudos de Georg e Vera Leisner nos anos quarenta do século passado, ser já então considerada terra de antas e de dolmens, foi com as novas descobertas e trabalhos sobre menhires realizados nos anos sessenta e setenta (Cromeleques do Xerez, do Monte da Ribeira e dos Perdigões, Menhires do Outeiro, da Belhoa ou de Santa Margarida, entre outros) que a região começou a ser conhecida e procurada, por investigadores ou simples turistas, como um grande centro megalítico. Para esse reconhecimento, o monumento restaurado do Xerez, entretanto classificado como Imóvel de Interesse Público em 1986, contribuiu por certo de forma absolutamente decisiva.
A nossa primeira visita Familiar em 1982 
 
A especial localização do Cromeleque do Xerez, no centro de extenso e fértil vale, orientado de Poente a Nascente e drenando directamente várias linhas de água para o grande Rio Guadiana, acabaria por estar na origem de novo sobressalto sofrido pelo monumento. Com efeito, a quando da sua identificação e restauro, já o destino daquelas e de muitas outras terras ribeirinhas do Guadiana, entre Alqueva e Juromenha, numa extensão nunca antes vista, estava praticamente decidido pela construção de uma barragem que afectaria os testemunhos materiais, conhecidos ou desconhecidos, de milénios de História. Em 1967, ainda antes da descoberta do Cromeleque do Xerez, Afonso do Paço, o arqueólogo que acabava de revelar o potencial arqueológico do vizinho sítio romano do " Castelo da Lousa", também ele ameaçado, chamava a atenção enquanto Presidente da Associação dos Arqueólogos Portugueses, para a necessidade de uma grande campanha que, antes da construção da barragem, identificasse e estudasse o património ainda por descobrir no Vale do Guadiana. Ainda que de forma muito condicionada pelas vicissitudes que o próprio projecto do Alqueva conheceu até à sua concretização muitos anos depois, o apelo de Afonso do Paço, secundado por Pires Gonçalves e outros arqueólogos entretanto desaparecidos não foi em vão. Aproveitando estudos anteriores mas ganhando especial fôlego a partir de 1995, a EDIA promoveria até praticamente ao fecho das comportas da grande Barragem em 2002, um vasto plano de prospecções, levantamentos, estudos e escavações, naquela que é considerada a maior operação de salvamento arqueológico jamais realizada em Portugal e uma das maiores de sempre mesmo à escala internacional. Só no vale tutelado pela presença do Cromeleque do Xerez foram realizadas dezenas de sondagens e escavações, comprovando a especial importância destas terras, ao longo de todas as épocas históricas. A poucas centenas de metros do Cromeleque, situava-se uma das muitas antas localizadas na região pelos Leisner, a " Anta do Xerez de Baixo", entretanto escavada e protegida antes da subida das águas. Vestígios do Paleolítico Médio e Superior foram localizados no vale e na sua envolvente imediata, com particular destaque para o sítio dos Sapateiros 2, na proximidade da nova ponte do Guadiana. Já nas margens do Rio, junto do que sempre foi um importante vau de travessia, seria descoberta um dos mais importantes sítios pré-históricos do Alqueva, revelando vestígios raríssimos de um local de caça, datados do Epipaleolítico {Barca b Xerez de Baixo) e mostrando a importância do Rio para as úItimas comunidades de caçadores recolectores deste território. Para além da referida anta acabariam também por ser localizados escavados em diversos pontos do Vale, sítios e estruturas contemporâneas da construção do Cromeleque e associáveis às comunidades neolíticas que o frequentavam, merecendo especial destaque o sítio de habitat que recebeu o nome de Xerez 12, onde foram descobertos quase intactos diversos fornos de argila relacionados com a vida doméstica. Em períodos mais recentes da Pré e Protohistória, os vestígios parecem ser menos abundantes nas terras baixas e concentrar-se em povoados, por vezes já fortificados, nas colinas envolventes, como é o caso do alto de S. Gens (onde ainda hoje se ergue uma atalaia medieval) ou a própria colina de Monsaraz, com vestígios que fazem recuar a sua origem, pelo menos à Idade do Bronze. Mas em época romana, a exploração agrícola e mineira do vale deve ter sido intensa como o provam a grande densidade de achados atribuídos a essa época. Não muito longe do Cromeleque, nas proximidades da demolida Ponte de Mourão, o sítio chamado Xerez de Baixo 13, revelou-se como um grande habitat relacionado com a actividade de exploração mineira na época romana. A presença do vau ou "porto" da Barca, que servia a antiga estrada de Mourão para Monsaraz, protegido por velhas atalaias, especialmente activas nas guerras da Restauração e que a arqueologia também estudou, ajudam a contextualizar os vestígios de ruínas mais recentes, antecessoras directas do grande Monte do Xerez de Baixo, sede da Herdade agrícola durante as últimas décadas e, entretanto, também desactivado e demolido.
A densidade e importância dos vestígios arqueológicos, se bem que excepcional no Vale do Xerez, constituiu uma surpresa comum a quase toda a região de Alqueva. Mesmo sítios que julgávamos conhecer bem, como as ruínas romanas do Castelo da Lousa, acabaram por revelar novos e surpreendentes dados. Zonas até então verdadeiros "desertos" arqueológicos, como em toda a margem espanhola do Guadiana, entre a Ponte da Ajuda e a Ribeira de Cuncos, proporcionaram descobertas verdadeiramente extraordinárias, como o bem conservado sítio romano de El Pico, o grande povoado calcolítico de San Blas, ou mesmo o povoado islâmico de Cuncos, já para não falarmos das inesperadas descobertas de Arte Rupestre. Apesar disso, considerando a natureza dos impactes negativos provocados pelo processo de inundação, a estratégia de salvaguarda dos vestígios identificados assumiria um cariz essencialmente preventivo, passando antes de mais pelo seu estudo e registo tão abrangente quanto possível. Os dados científicos observados no terreno e a sua posterior interpretação e divulgação, são nestes casos os  instrumentos possíveis ao serviço da "minimização", mesmo que alguns dos materiais recolhidos, apesar do seu carácter fragmentário, possam em ambiente museológico ajudar a contextualizar o discurso sobre o passado da região, como acontece no pequeno Museu da Aldeia da Luz, construído e gerido pela EDIA. Com esse objectivo, nalguns casos excepcionais, algumas estruturas isoladas foram também recuperadas para futura exposição, como aconteceu na Barca do Xerez de Baixo e no Xerez 12. Por outro lado, quando justificado pela natureza e estado de conservação, foram também tomadas medidas de protecção de estruturas "in situ", através da sua "selagem". Tal aconteceu, por exemplo, em todas as antas afectadas, nomeadamente na Anta do Xerez de Baixo, protegida por uma carapaça de terra e pedras, fazendo lembrar a mamoa que a terá coberto originalmente. Neste âmbito, porém, a intervenção mais espectacular, viria a ser concretizada no Castelo da Lousa, envolvido por um gigantesco sarcófago de sacos de areia e betão que se espera poder preservar esta ruína romana para um futuro já sem barragem. Neste contexto, a transladação do Cromeleque do Xerez, acabaria por assumir um carácter de excepção absoluta em Alqueva, até porque no caso que mais se lhe aproxima, a nova Igreja Matriz da Luz, estamos perante uma "reconstrução-cópia" na qual apenas foram integrados alguns elementos originais. Arqueólogos e arquitectos, conscientes de que este monumento pré-histórico (qualquer monumento, afinal) mantinha uma estreita relação com o meio envolvente e que a escolha do seu local de implantação obedeceu a cânones e rituais complexos cujo protocolo e significado nos escapará para sempre, sabiam que a decisão de reinstalar o Cromeleque não era simples nem automática. É certo que o "restauro" de há três décadas, obedecendo a pressupostos que os novos estudos não vieram contradizer, facilitava aquela opção. Realizadas novas e completas escavações conduzidas em 1998 por Mário Varela Gomes, a primeira fase da transladação (desmonte, transporte e armazenamento dos menhires) viria a realizar-se em Novembro de 2001, cerca de três meses antes do fecho das comportas da barragem de Alqueva. Na escolha da nova localização, estando fora de causa reproduzir contextos irrepetíveis, acabaram por pesar essencialmente os critérios de circunstância e oportunidade. A disponibilidade por parte da Junta de Freguesia de um terreno situado nas proximidades de Monsaraz, junto ao Convento da Orada, com espaço, acessos e condições para aí vir a ser construído um dia um grande museu de Arqueologia, seria o ponto de partida para a solução encontrada, entretanto projectada pelo arquitecto paisagista Daniel Monteiro e por fim concluída em Junho de 2004 pela Câmara Municipal de Reguengos de Monsaraz com o financiamento da EDIA.
O Cromeleque do Xerez foi dado a conhecer ao meio arqueológico em comunicação proferida por J. Pires Gonçalves em Fevereiro de 1970 na Associação dos Arqueólogos Portugueses, sendo a mesma publicada naquele ano na revista da AAP, Arqueologia e História, VII., sob o título "Menires de Monsaraz". Depois disso foi regularmente referido em artigos e estudos sobre o megalitismo e a sua imagem ilustrou praticamente todas as sínteses sobre a Pré-história portuguesa. O arqueólogo Jorge Pinho Monteiro, enquanto assistente da Universidade de Évora e responsável por um primeiro Plano de Arqueologia para o Alqueva (1979), chegou a iniciar um novo levantamento do Cromeleque que não concluiria devido à sua morte precoce. Por convite da EDIA, Mário Varela Gomes escavou integralmente o monumento no ano de 1998, tendo publicado extensa e completa monografia sobre o mesmo no 2º volume da série "Memórias d'Odiana", EDIA, 2000, sob o título "Cromeleque do Xerez, a ordenação do caos". O projecto da reinstalação é da autoria do Arquitecto Paisagista Daniel Monteiro.

António Carlos Silva, EDIA, Julho 2004




Com a reinstalação junto a Monsaraz do CROMELEQUE DO XEREZ, concretiza-se mais uma das medidas identificadas no Plano de Minimização de Impactes Arqueológicos de Alqueva, aprovado pelo Ministério da Cultura no ano de 1997. Passo a passo, acompanhando o desenrolar das múltiplas fases e componentes do Empreendimento, um vasto leque de acções de levantamento, estudo e salvaguarda patrimonial, sem paralelo à escala nacional, tem vindo a ser promovido pela EDIA, provando mais uma vez que o Projecto de Alqueva não é (nem podia ser) apenas uma grande Barragem. Nesse contexto, mais do que preservar e estudar preventivamente por mera obrigação legal, umas "pedras" ou uns "cacos", a actividade patrimonial e ambiental em Alqueva procura ser transversal a todo o projecto, contribuindo também (de forma exemplar, julgamos nós) para o objectivo do desenvolvimento sustentado. Seja pela promoção indirecta de novas actividades empresariais com reflexos na criação de emprego qualificado, seja pelo enquadramento e apoio a projectos regionais inovadores de âmbito cultural ou científico, seja, como é o caso, pela recuperação, valorização e divulgação dos valores ' patrimoniais e ambientais próprios capazes de darem suporte não apenas a um turismo    de qualidade mas sobretudo a uma melhoria efectiva dos níveis de qualidade de vida e jèJÊ. de auto estima das populações locais. O Cromeleque do Xerez, evoca antes de mais os seus fundadores originais, os primeiros agricultores que assim terão assinalado o seu estabelecimento nas terras do Guadiana há mais de 6 000 anos. Hoje, reconstruído junto à Orada face ao grande lago de Alqueva, evoca também o futuro que queremos construir, de desenvolvimento harmonioso e sustentado, para todo o Alentejo.

Joaquim Marques Ferreira

Presidente do Conselho de Administração da EDIA - Julho de 2004

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