Erguido cerca de 5 000 anos antes de Cristo por uma comunidade
pré-histórica de agricultores e pastores, talvez num ritual de apropriação do
vale cujo centro geográfico parecia assinalar; usado e reutilizado durante mais
de mil anos como espaço de culto, magia e memória pelos descendentes dos
fundadores; por fim, abandonado e esquecido durante milénios, o CROMELEQUE DO
XEREZ, redescoberto quase por acaso há pouco mais de trinta anos, renasceria
para nova mas fugaz vida em 6 de Maio de 1972 quando alguém fez reerguer sobre
a cova original o grande menhir fálico. As pedras do Xerez, identificadas e
ordenadas uma a uma num gesto típico da racionalidade do Século XX,
transformadas de novo em memorial colectivo e marca territorial, recuperaram
parte da magia original. Na sua singularidade formal e magnífico enquadramento,
o Cromeleque do Xerez em breve conquistaria o papel de ícone cultural
pré-histórico do Alentejo, conferindo ao vale que o acolhia e onde era
procurado por numerosos viajantes e turistas, um encantamento muito especial. A
28 de Novembro de 2001, o grande menhir do Xerez foi de novo apeado e
transportado para fora do vale com os restantes monólitos que o enquadravam. Num
acto conscientemente assumido pela mesma comunidade que anos antes o recuperara
do esquecimento, tal atitude anunciava nova e profunda transformação das terras
do Xerez que perdidas referências que presumíramos quase eternas, rapidamente
se viram inundadas pelas águas represadas do Guadiana.
Deslocadas e guardadas durante meses, as pedras afeiçoadas
do Xerez encontraram poiso junto à Orada de Monsaraz e mais uma vez, em acto
não isento de algum ritualismo, reerguidas à justa medida da intuição do seu
redescobridor. Perdido, há muitos milénios, o seu enigmático contexto fundacional,
o Cromeleque do Xerez (reinstalado) assinala a partir de agora, não apenas um
território transfigurado pela insaciável vertigem humana de mudança mas uma
nova e paradigmática simbologia memorial. De facto, enquanto única estrutura
monumental que foi decidido salvar e recuperar do vale inundado pelo Alqueva,
apesar da vastíssima operação de pesquisa arqueológica aí empreendida, a
excepção do Cromeleque do Xerez, transladado e reerguido face ao grande lago,
acaba por assumir no seu simbolismo telúrico e singularidade formal, um novo e
solitário estatuto de monumento, à vez pré-histórico e contemporâneo, levantado
pelos homens do Século XXI à mais remota memória histórica do inundado
território de Alqueva.
Foi ano de 1969 que alguém, atento no aspecto e forma de uma
grande pedra deslocada por trabalhos agrícolas na Herdade do Xerez (ou do
Xarez), alertou José Pires Gonçalves, para a possibilidade de se estar perante
descoberta semelhante ao menhir do Outeiro, grande monólito de forma fálica que
pouco tempo antes aquele conhecido médico de Reguengos de Monsaraz,
historiador, antropólogo e arqueólogo nas horas vagas, tinha identificado e
feito reerguer no local do achado, próximo da aldeia do Outeiro. Ao proceder ao
reconhecimento da nova descoberta, a Sul da colina fortificada de Monsaraz e no
centro de um extenso vale aberto a Nascente sobre o Guadiana e a meio caminho
entre os Montes do Xerez de Baixo e do Xerez de Cima, Pires Gonçalves teve
oportunidade não apenas de confirmar a origem pré-histórica da grande pedra
tombada, como de verificar que estava associada a um verdadeiro "ninho de
menhires" deslocados e amontoados pela maquinaria agrícola. Conhecedor dos
trabalhos de Henrique Leonor de Pina que na região de Évora havia dado a
conhecer poucos anos antes os Cromeleques dos Almendres e da Portela de Mogos,
Pires Gonçalves resolveu aprofundar o reconhecimento arqueológico dos achados
do Xerez, tendo descoberto a estrutura de sustentação do menhir de maiores
dimensões, bem como indícios das covas de implantação de outros. Considerando
os dados observados, Pires Gonçalves interpretou o conjunto de meia centena de
monólitos de dimensões variáveis, alguns afeiçoados e com gravações rupestres,
como vestígios de um recinto megalítico pré-histórico entretanto desmantelado.
Ao promover a sua reconstituição em 1972 e tendo em conta os resultados da sua
própria investigação, viria a decidir-se por um quadrilátero, estabelecido a
partir do menir central e com os lados orientados no sentido dos pontos
cordiais, uma forma pouco comum e algo controversa mas de que são conhecidos
exemplos similares no Norte da Europa. Apesar de Reguengos de Monsaraz, graças
aos estudos de Georg e Vera Leisner nos anos quarenta do século passado, ser já
então considerada terra de antas e de dolmens, foi com as novas descobertas e
trabalhos sobre menhires realizados nos anos sessenta e setenta (Cromeleques do
Xerez, do Monte da Ribeira e dos Perdigões, Menhires do Outeiro, da Belhoa ou
de Santa Margarida, entre outros) que a região começou a ser conhecida e
procurada, por investigadores ou simples turistas, como um grande centro
megalítico. Para esse reconhecimento, o monumento restaurado do Xerez,
entretanto classificado como Imóvel de Interesse Público em 1986, contribuiu
por certo de forma absolutamente decisiva.
A nossa primeira visita Familiar em 1982
A especial localização do Cromeleque do Xerez, no centro de
extenso e fértil vale, orientado de Poente a Nascente e drenando directamente
várias linhas de água para o grande Rio Guadiana, acabaria por estar na origem
de novo sobressalto sofrido pelo monumento. Com efeito, a quando da sua
identificação e restauro, já o destino daquelas e de muitas outras terras
ribeirinhas do Guadiana, entre Alqueva e Juromenha, numa extensão nunca antes
vista, estava praticamente decidido pela construção de uma barragem que
afectaria os testemunhos materiais, conhecidos ou desconhecidos, de milénios de
História. Em 1967, ainda antes da descoberta do Cromeleque do Xerez, Afonso do
Paço, o arqueólogo que acabava de revelar o potencial arqueológico do vizinho
sítio romano do " Castelo da Lousa", também ele ameaçado, chamava a
atenção enquanto Presidente da Associação dos Arqueólogos Portugueses, para a
necessidade de uma grande campanha que, antes da construção da barragem,
identificasse e estudasse o património ainda por descobrir no Vale do Guadiana.
Ainda que de forma muito condicionada pelas vicissitudes que o próprio projecto
do Alqueva conheceu até à sua concretização muitos anos depois, o apelo de
Afonso do Paço, secundado por Pires Gonçalves e outros arqueólogos entretanto
desaparecidos não foi em vão. Aproveitando estudos anteriores mas ganhando
especial fôlego a partir de 1995, a EDIA promoveria até praticamente ao fecho
das comportas da grande Barragem em 2002, um vasto plano de prospecções,
levantamentos, estudos e escavações, naquela que é considerada a maior operação
de salvamento arqueológico jamais realizada em Portugal e uma das maiores de
sempre mesmo à escala internacional. Só no vale tutelado pela presença do
Cromeleque do Xerez foram realizadas dezenas de sondagens e escavações,
comprovando a especial importância destas terras, ao longo de todas as épocas
históricas. A poucas centenas de metros do Cromeleque, situava-se uma das
muitas antas localizadas na região pelos Leisner, a " Anta do Xerez de
Baixo", entretanto escavada e protegida antes da subida das águas.
Vestígios do Paleolítico Médio e Superior foram localizados no vale e na sua
envolvente imediata, com particular destaque para o sítio dos Sapateiros 2, na
proximidade da nova ponte do Guadiana. Já nas margens do Rio, junto do que
sempre foi um importante vau de travessia, seria descoberta um dos mais importantes
sítios pré-históricos do Alqueva, revelando vestígios raríssimos de um local de
caça, datados do Epipaleolítico {Barca b Xerez de Baixo) e mostrando a
importância do Rio para as úItimas comunidades de caçadores recolectores deste
território. Para além da referida anta acabariam também por ser localizados
escavados em diversos pontos do Vale, sítios e estruturas contemporâneas da
construção do Cromeleque e associáveis às comunidades neolíticas que o
frequentavam, merecendo especial destaque o sítio de habitat que recebeu o nome
de Xerez 12, onde foram descobertos quase intactos diversos fornos de argila
relacionados com a vida doméstica. Em períodos mais recentes da Pré e
Protohistória, os vestígios parecem ser menos abundantes nas terras baixas e
concentrar-se em povoados, por vezes já fortificados, nas colinas envolventes,
como é o caso do alto de S. Gens (onde ainda hoje se ergue uma atalaia
medieval) ou a própria colina de Monsaraz, com vestígios que fazem recuar a sua
origem, pelo menos à Idade do Bronze. Mas em época romana, a exploração
agrícola e mineira do vale deve ter sido intensa como o provam a grande
densidade de achados atribuídos a essa época. Não muito longe do Cromeleque,
nas proximidades da demolida Ponte de Mourão, o sítio chamado Xerez de Baixo
13, revelou-se como um grande habitat relacionado com a actividade de
exploração mineira na época romana. A presença do vau ou "porto" da
Barca, que servia a antiga estrada de Mourão para Monsaraz, protegido por
velhas atalaias, especialmente activas nas guerras da Restauração e que a
arqueologia também estudou, ajudam a contextualizar os vestígios de ruínas mais
recentes, antecessoras directas do grande Monte do Xerez de Baixo, sede da
Herdade agrícola durante as últimas décadas e, entretanto, também desactivado e
demolido.
A densidade e importância dos vestígios arqueológicos, se
bem que excepcional no Vale do Xerez, constituiu uma surpresa comum a quase
toda a região de Alqueva. Mesmo sítios que julgávamos conhecer bem, como as
ruínas romanas do Castelo da Lousa, acabaram por revelar novos e surpreendentes
dados. Zonas até então verdadeiros "desertos" arqueológicos, como em
toda a margem espanhola do Guadiana, entre a Ponte da Ajuda e a Ribeira de
Cuncos, proporcionaram descobertas verdadeiramente extraordinárias, como o bem
conservado sítio romano de El Pico, o grande povoado calcolítico de San Blas,
ou mesmo o povoado islâmico de Cuncos, já para não falarmos das inesperadas
descobertas de Arte Rupestre. Apesar disso, considerando a natureza dos
impactes negativos provocados pelo processo de inundação, a estratégia de
salvaguarda dos vestígios identificados assumiria um cariz essencialmente
preventivo, passando antes de mais pelo seu estudo e registo tão abrangente
quanto possível. Os dados científicos observados no terreno e a sua posterior
interpretação e divulgação, são nestes casos os
instrumentos possíveis ao serviço da "minimização", mesmo que
alguns dos materiais recolhidos, apesar do seu carácter fragmentário, possam em
ambiente museológico ajudar a contextualizar o discurso sobre o passado da
região, como acontece no pequeno Museu da Aldeia da Luz, construído e gerido
pela EDIA. Com esse objectivo, nalguns casos excepcionais, algumas estruturas
isoladas foram também recuperadas para futura exposição, como aconteceu na
Barca do Xerez de Baixo e no Xerez 12. Por outro lado, quando justificado pela
natureza e estado de conservação, foram também tomadas medidas de protecção de
estruturas "in situ", através da sua "selagem". Tal
aconteceu, por exemplo, em todas as antas afectadas, nomeadamente na Anta do
Xerez de Baixo, protegida por uma carapaça de terra e pedras, fazendo lembrar a
mamoa que a terá coberto originalmente. Neste âmbito, porém, a intervenção mais
espectacular, viria a ser concretizada no Castelo da Lousa, envolvido por um
gigantesco sarcófago de sacos de areia e betão que se espera poder preservar
esta ruína romana para um futuro já sem barragem. Neste contexto, a
transladação do Cromeleque do Xerez, acabaria por assumir um carácter de
excepção absoluta em Alqueva, até porque no caso que mais se lhe aproxima, a
nova Igreja Matriz da Luz, estamos perante uma "reconstrução-cópia"
na qual apenas foram integrados alguns elementos originais. Arqueólogos e arquitectos,
conscientes de que este monumento pré-histórico (qualquer monumento, afinal)
mantinha uma estreita relação com o meio envolvente e que a escolha do seu
local de implantação obedeceu a cânones e rituais complexos cujo protocolo e
significado nos escapará para sempre, sabiam que a decisão de reinstalar o
Cromeleque não era simples nem automática. É certo que o "restauro"
de há três décadas, obedecendo a pressupostos que os novos estudos não vieram
contradizer, facilitava aquela opção. Realizadas novas e completas escavações
conduzidas em 1998 por Mário Varela Gomes, a primeira fase da transladação
(desmonte, transporte e armazenamento dos menhires) viria a realizar-se em
Novembro de 2001, cerca de três meses antes do fecho das comportas da barragem
de Alqueva. Na escolha da nova localização, estando fora de causa reproduzir
contextos irrepetíveis, acabaram por pesar essencialmente os critérios de
circunstância e oportunidade. A disponibilidade por parte da Junta de Freguesia
de um terreno situado nas proximidades de Monsaraz, junto ao Convento da Orada,
com espaço, acessos e condições para aí vir a ser construído um dia um grande
museu de Arqueologia, seria o ponto de partida para a solução encontrada,
entretanto projectada pelo arquitecto paisagista Daniel Monteiro e por fim
concluída em Junho de 2004 pela Câmara Municipal de Reguengos de Monsaraz com o
financiamento da EDIA.
O Cromeleque do Xerez foi dado a conhecer ao meio arqueológico
em comunicação proferida por J. Pires Gonçalves em Fevereiro de 1970 na
Associação dos Arqueólogos Portugueses, sendo a mesma publicada naquele ano na
revista da AAP, Arqueologia e História, VII., sob o título "Menires de
Monsaraz". Depois disso foi regularmente referido em artigos e estudos
sobre o megalitismo e a sua imagem ilustrou praticamente todas as sínteses
sobre a Pré-história portuguesa. O arqueólogo Jorge Pinho Monteiro, enquanto
assistente da Universidade de Évora e responsável por um primeiro Plano de
Arqueologia para o Alqueva (1979), chegou a iniciar um novo levantamento do
Cromeleque que não concluiria devido à sua morte precoce. Por convite da EDIA,
Mário Varela Gomes escavou integralmente o monumento no ano de 1998, tendo publicado
extensa e completa monografia sobre o mesmo no 2º volume da série
"Memórias d'Odiana", EDIA, 2000, sob o título "Cromeleque do
Xerez, a ordenação do caos". O projecto da reinstalação é da autoria do
Arquitecto Paisagista Daniel Monteiro.
António Carlos Silva, EDIA, Julho 2004
Com a reinstalação junto a Monsaraz do CROMELEQUE DO XEREZ,
concretiza-se mais uma das medidas identificadas no Plano de Minimização de
Impactes Arqueológicos de Alqueva, aprovado pelo Ministério da Cultura no ano
de 1997. Passo a passo, acompanhando o desenrolar das múltiplas fases e
componentes do Empreendimento, um vasto leque de acções de levantamento, estudo
e salvaguarda patrimonial, sem paralelo à escala nacional, tem vindo a ser
promovido pela EDIA, provando mais uma vez que o Projecto de Alqueva não é (nem
podia ser) apenas uma grande Barragem. Nesse contexto, mais do que preservar e
estudar preventivamente por mera obrigação legal, umas "pedras" ou
uns "cacos", a actividade patrimonial e ambiental em Alqueva procura
ser transversal a todo o projecto, contribuindo também (de forma exemplar,
julgamos nós) para o objectivo do desenvolvimento sustentado. Seja pela
promoção indirecta de novas actividades empresariais com reflexos na criação de
emprego qualificado, seja pelo enquadramento e apoio a projectos regionais
inovadores de âmbito cultural ou científico, seja, como é o caso, pela
recuperação, valorização e divulgação dos valores ' patrimoniais e ambientais
próprios capazes de darem suporte não apenas a um turismo de qualidade mas sobretudo a uma melhoria
efectiva dos níveis de qualidade de vida e jèJÊ. de auto estima das populações
locais. O Cromeleque do Xerez, evoca antes de mais os seus fundadores
originais, os primeiros agricultores que assim terão assinalado o seu
estabelecimento nas terras do Guadiana há mais de 6 000 anos. Hoje,
reconstruído junto à Orada face ao grande lago de Alqueva, evoca também o
futuro que queremos construir, de desenvolvimento harmonioso e sustentado, para
todo o Alentejo.
Joaquim Marques Ferreira
Presidente do Conselho de Administração da EDIA - Julho de
2004
Muuuiiito, muito bom.
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