E

segunda-feira, outubro 05, 2015

A Arqueologia e a Herdade do Esporão, uma colheita de Eleição. (2)




No 5 de Outubro, um dia muito particular em ângulos muito variados, e ainda a propósito dos Perdigões, atrevo-me a uma reflexão sobre a Liberdade.
 


Na arqueologia de campo, existe a tendência (boa) para que cada investigador seja sugestionado pelos conteúdos dos círculos onde trabalha e se movimenta. A informação sobre o Mundo da pré-história está cada vez mais globalizada e acessível, e portanto a importância e o enquadramento de cada “nova” descoberta transforma muitas cartilhas, e provoca a quem vive no ambiente científico a avaliação permanente das metodologias interpretativas.
A pré-história, é o melhor dos ambientes para frutificar a dúvida sistemática, que abrange os espaços ocupados pelas populações, os registos por elas edificados e abandonados por razões desconhecidas, bem como todos os materiais que preenchem as camadas arqueológicas desde a base da primeira ocupação até ao estrato mais proximal. À medida que se passa do conhecimento dos sítios ao reconhecimento dos subsolos, e a novas localizações, alarga-se o campo de análise às relações entre cada agregado material e as hipóteses já em discussão para o enquadramento dos paralelismos. Uma ideia de arqueologia que não conviva com reservas mentais, fica cada vez mais forte com novos achados traduzidos em avanços no conhecimento.
Nos Perdigões, foram encontradas “FIGURAS ANTROPOMÓRFICAS” – “Personagens terrenas ou divinas, representações ou entidades vivas, estas figurinhas introduzem pela primeira vez na arte Pré-Histórica um corpo humano fortemente subordinado ao naturalismo e relembram que o esquematismo vigente na época resulta inequivocamente uma opção estética e não de qualquer incapacidade técnica” (in COMPLEXO ARQUEOLÓGICO DOS PERDIGÕES ed. ESPORÃO).
Já deixei expresso em vários apontamentos firme discordância com a “incapacidade técnica” na pré-história, que nunca poderá ser aceite sem um comprovado fundamento físico, e este é impossível de se justificar em populações que nos deixaram materiais líticos, em osso, marfim, metal, ou em cerâmica, resultantes de notável domínio sobre a matéria e forte determinação na relação da estética com a função prática dos “objectos”, em especial dos não “mudos”. Também é inaceitável, que na raça Humana tenha ocorrido um longo “desaparecimento” dos registos das capacidades inatas dos descendentes de gravadores e pintores paleolíticos, e que as opções estéticas das sociedades agro-pastoris ocupantes dos mesmos espaços geográficos tenham surgido por influência de gente com origem em paragens orientais que tenha entretanto vindo aportar ao mesmo território, como acontece com a introdução em muitos discursos da expressão “influência orientalizante”.
Ficará sempre por provar que nas primitivas sociedades agro-pastoris a classe dominante (a elite, para alguns) vivia à custa de um já diversificado conjunto de servos (caçadores, pastores, tecelões, ceramistas, etc) quem sabe se aconchegados numa guarda pretoriana, e a felicidade era apenas o resultado da satisfação de todos os seus “vícios”. Luís Raposo (LR), num artigo publicado há tempos no Jornal Público escrevia que “para o caçador do Paleolítico, o valor supremo era o ócio”, mas tal ideia colocada abstractamente no espaço e marcada num tempo, é redutora da capacidade de um Homem, que desde o “Neandertal”, terá tido sempre no pensamento a capacidade de exigência da liberdade, embora LR pretenda justificar tal atitude porque acha que a primeira das preocupações era então o “controlo da natalidade”. 

É difícil entender o “ócio” na pré-história como uma manifestação do consciente, já que se aceita como característica humana, e com agrado, que a necessidade aguça o engenho, e naquele período da humanidade o desconhecido tinha uma tal dimensão que o olhar à volta como instinto defensivo também potenciava a descodificação das mensagens que a natureza transmite como uma espécie de transpiração. O ócio seria pois, e quanto muito, um instrumento de aprendizagem e ao mesmo tempo um estimulante cerebral. Se os construtores idealistas dos Perdigões encontraram aquele lugar completamente despovoado, tiveram pois a liberdade de pensar nos requisitos para cumprir o seu objectivo imediato de instalação, e as experiências passadas, e o “ócio” terão quiçá conduzido à definição da sua arquitectura organizacional em base astronómica, com as quatro entradas do complexo arqueológico em pontos opostos de duas linhas determinadas pelo nascimento e ocaso do sol nos solstícios de verão e de inverno.

O António Carlos Valera, discorrendo sobre os resultados nas escavações nos Perdigões, acha que os seus ocupantes não tinham ainda colocado a raça humana num patamar superior ao dos animais, pois interpreta como tal a convivência das representações animais e humanas em contextos de deposição funerária, e ainda no simbolismo funerário de um canídeo e o seu relevante enquadramento espacial no “recinto”. 

À reflexão sobre a mais ampla das liberdades que é a criação, traduzida numa primeira fase em fazer um filh@, e depois em encontrar as condições para que esse ser possa sobreviver no meio ambiente hostil, não é indiferente (antes pelo contrário) à nossa experiência de vida e às transformações socio-culturais que fomos sendo capazes de apreender, e portanto quando se pretende discorrer sobre as representações zoomórficas ou antropomórficas na pré-história, falta a base de conhecimento do ambiente socio-cultural, que embora sempre evolutivo, também não sabemos se foi muito ou pouco descontínuo, e que factores exógenos às sociedades autóctones determinaram cada uma das alterações que julgamos estar traduzidas em alguns dos objectos (uns aparentemente votivos, outros ditos do quotidiano) que as escavações arqueológicas vão revelando, como é o caso dos chamados simplesmente de “ídolos” (ex. “figuras antropomorfas”).
Na pré-história, quando espontaneamente um artesão concebia um objecto ideotécnico, o prazer da liberdade criativa sublimava a identidade, regulava a sua responsabilidade para com a natureza que lhe comunicou o instinto dos processos criativos, deixando na arte não apenas uma impressão digital ao acaso, mas a construção de uma visão intimista do Mundo Ideal, que agora é impossível descodificarmos. No Museu do Esporão, estão hoje disponíveis algumas das traduções estéticas encontradas no sítio dos Perdigões que revelam a expressão de uma liberdade criativa, e de felicidade porventura inquestionável.
Se todo o ser tem direito à felicidade, a Liberdade é o valor supremo da Humanidade, sendo a privação da mesma contranatura. A ´”história” de que a liberdade de cada um acaba quando não se respeita a liberdade dos outros, é um aforismo, visto que o Homem encontra todos os dias “razões” para retirar a vida a milhares de seres humanos, seja por Leis que os Povos vão achando a cada momento adequadas, seja por causa de disputas fúteis, seja por razões ideológicas que justificam guerras mais ou menos “santas”, mas sempre através do poder do dinheiro, das burocracias de vários matizes desde a mediática à clerical, ou até mesmo porque “apetece”.
Na chamada liberdade civil,
que segundo Vattel,  é o “estado em que os cidadãos, desfrutando de sua liberdade natural, mas em que não está presente o bem público, estão sujeitos a um Governo regulado por leis e não a um poder arbitrário”, a privação da liberdade, só por si assente numa decisão discricionária, mesmo que “justificada” em disposições legais, traduz-se simplesmente numa forma de tortura.
Nas épocas da pré-história que mais aprecio, o período que abrange o neolítico final e o calcolítico, a criatividade tem uma forte acreditação na pureza das expressões plásticas, e embora possa não ser claro, acho que a sua coerência reflete uma forte expressão da liberdade, uma liberdade que se sublimava na descoberta, ocupação e desbravamento de um território desconhecido, que praticamente ainda não tinha donos, e em que as grandes preocupações de segurança se equilibravam entre as fontes dos perigos humano e animal.
A Liberdade está cada vez mais “cara”, morre-se todos os dias para a defender, e continua como sempre sendo objecto de preocupação, estudo e teimosia para todos os que consideram que a vida só tem sentido se for sendo justificada, tal como fazia o Homem da pré-história, que compreendendo “tanto” como nós sobre o segredo vital da criação do Universo, intuia que a ligação entre o passado e o seu presente devia ficar marcada na Terra, pelo menos nos ambientes funerários quando os corpos acabam esmagados pelo peso da abóboda celeste.
Construir a liberdade, será sempre tarefa do Arquitecto dos idealismos puristas.

Sem comentários:

Enviar um comentário