A minha paixão pela obra de Amadeo já não é novidade para quem me leia, e portanto sempre que suspeito que no CAM possa vir apanhar Sol algum trabalho dele que ainda não me tenha iluminado, aí vou eu. Desta vez, a correria tinha outro enquadramento mais vasto e profundo com a companhia do casal Delaunay. Foi uma mera abordagem, pois a visita a sério está guardada paras as “férias de Natal”, momento em que quero partilhar os círculos de cor com a alegria das minhas Netas, e que se hão-de inspirar para passadas as Festas fazerem e me mandarem postais cheios de riscos de luz. Por lá, espalhados estavam grupos de crianças que sentados no chão confessavam a sua reacção às explicações sobre alguns dos quadros expostos.
O CÍRCULO DELAUNAUY
O Círculo Delaunay encontra-se na exaltação da cor e na relação criativa entre as várias artes. Não produz um manifesto, embora ocorra na sequência de um tempo de manifestos, e não é identificável com nenhum movimento artístico ainda que os termos «orfismo» e «simultaneísmo», o primeiro criado pelo poeta Guillaume Apollinaire em 1912, o segundo da responsabilidade de Robert Delaunay - que desenvolve também em 1912, a sua teoria da simultaneidade -, lhe estejam naturalmente associados. É um círculo que se desenha a partir de Portugal, entre 1915 e 1917, constituído por artistas, lugares, os seus projetos e criações, e que se expande e retrai em virtude da dinâmica dos seus ocupantes.
Encontramos artistas a trabalhar intensamente em lugares identificáveis. Sónia e Robert Delaunay chegam a Lisboa em finais de Maio de 1915, possivelmente atraídos à capital portuguesa pela publicação do primeiro número da revista Orpheu, em 24 de março anterior, e pela presença em Portugal de amigos artistas que já conheciam de Paris, como Amadeo de Souza-Cardoso, Eduardo Viana e José Pacheco. Em junho, instalam-se em Vila do Conde, para onde terão sido levados por Viana. A sua casa, a que chamam "La Simultanée", acolherá em longas temporadas de trabalho Viana e Samuel Halpert, artista americano que se tomara amigo de Robert Delaunay durante a sua estadia anos antes, na Bretanha. Visita-os também, em pelo menos duas ocasiões e por breves períodos, Amadeo de Souza-Cardoso, que a guerra retivera, desde Setembro de 1914, na quinta de seus pais em Manhufe, Amarante. De Lisboa, José de Almada Negreiros mantém com Sónia uma correspondência irregular onde é visível a inspiração que retira da sua presença em Portugal. A correspondência enviada por estes artistas e por José Pacheco a Sónia e Robert Delaunay - de que infelizmente não se conservaram as respostas destes últimos aos portugueses -, constituiu uma importante fonte documental para a investigação desta exposição e dos textos incluídos no seu catálogo (1).
A partir de agosto de 1916, após um intervalo de poucos meses em que se deslocam até Vigo, Sónia e Robert Delaunay voltam a Portugal, ficando a viver entre Valença do Minho e Monção até Janeiro de 1917, altura em que viajam para Espanha, saindo definitivamente de Portugal. Em Valença, Sónia Delaunay recebe a encomenda, verdadeiramente extraordinária, de uma pintura mural que seria passada a azulejo, destinada à fachada de um orfanato, o Asilo Fonseca pertencente à Santa Casa da Misericórdia (este edifício ainda existe, sendo atualmente a Escola Superior de Ciências Empresariais). A pintura deveria seguir um tema tradicional, a "Homenagem ao Doador", neste caso, Apolinário da Fonseca, um benemérito local. Infelizmente, a obra não chegou a concretizar-se, dela subsistindo o projeto e um estudo que agora se expõem. O regresso do casal Delaunay a Portugal em agosto de 1916 causou compreensível surpresa a Amadeo de Souza-Cardoso e a Eduardo Viana, sendo revelador do muito apreço que os Delaunay sentiam por Portugal. A saída de Sónia estivera envolvida num infeliz e absurdo episódio de 'espionite', como lhe chamou nas suas memórias(2).
Por volta de 12 de abril de 1916, sensivelmente um mês após a entrada de Portugal na Primeira Grande Guerra, a artista fora vítima de uma denúncia anónima que a acusava de ser espia pró-alemã, emitindo sinais, através dos círculos órficos da sua pintura, aos submarinos alemães ao largo da costa portuguesa (apesar de "La Simultanée" estar junto da praia e da luminosidade e colorido dos discos 'órficos', que como Sónia dirá, punham as cores a girar, esta hipótese era irrealista não tendo, no entanto, sido assim considerada pelas autoridades). Sónia era ainda acusada da posse de correspondência suspeita em alemão, cartas provavelmente mantidas com os seus amigos dos círculos DerSturm e Der Blaue Reiter com quem os Delaunay haviam exposto e colaborado em 1913. Sónia ficará retida durante cerca de 15 dias no Porto, impedida de viajar até Vigo para se reunira Robert e ao seu filho, Charles Delaunay, que aí se encontravam. Por seu lado, Eduardo Viana é preso em Vila do Conde e encaminhado para o Porto sob acusações de cumplicidade e traição, vendo os seus papéis e trabalhos mal tratados e estragados. Do mesmo modo, Beatriz Moraes, a criada dos Delaunay, é retida e uma mala apreendida. Amadeo de Souza-Cardoso é chamado por Sónia ao Porto onde diligenciará para a resolução do processo que fica resolvido em finais do mês de abril de 1916.
Logo à chegada a Lisboa, os Delaunay vão esboçar um projeto no qual envolvem os artistas portugueses e a que chamam Corporation Nouvelle (Nova Corporação). Através desta iniciativa pretendiam organizar Expositions Mouvantes Nord-Sud-Est-Ouest (Exposições Itinerantes Norte-Sul-Este-Oeste) e produzir álbuns, comprados por subscrição, nos quais os artistas deveriam executar trabalhos originais a pochoir que seriam conjugados com textos e poemas. Esta conjugação entre a palavra e a pintura havia sido realizada com muito sucesso com o livro desdobrável realizado em 1913 e intitulado La Prose du Transsibérien et de la PetiteJehanne de France [A Prosa do Transsiberiano e da Pequena Jehanne de França] numa colaboração entre Sónia Delaunay e o poeta Blaise Cendrars. Juntamente com várias obras realizadas em Portugal da autoria de Sónia Delaunay, e de quatro obras da autoria de Robert Delaunay, datadas do período parisiense do pré-guerra, este livro será exposto (e vendido) em Estocolmo, na única exposição que se pode considerar ter ocorrido no âmbito da Coroporation Nouvelle, realizada na Nya konstgalleriet, de Arturo Ciacelli, em 23 de março de 1916, exposição em que, no entanto, não participa nenhum dos artistas portugueses. Outra exposição está pensada para Barcelona, na Galeria de Josep Dalmau, sendo de grande interesse para Amadeo de Souza-Cardoso. No entanto, sucessivamente adiada, esta exposição da Corporation Nouvelle em Barcelona não se chega a concretizar.
Em Portugal, Sónia e Robert Delaunay vão experimentar a pintura a encáustica, pigmentos misturados com cera a quente. Aplicada à pintura simultaneísta, esta técnica conferia maior intensidade às cores e dava corpo à matéria pictórica, reforçando a cor na ordem construtiva da pintura. Embora Eduardo Viana, Sam Halpert e Amadeo de Souza-Cardoso tenham igualmente experimentado a pintura a cera, e tivessem em comum com os Delaunay o forte apelo da cor, não aderiram à pintura simultaneísta tal como era praticada por Sónia e Robert Delaunay. Interessava-lhes, sobretudo, a participação na renovação artística que a concretização da Corporation Nouvelle pressupunha, na união de esforços para a apresentação internacional conjunta das suas obras.
Ana Vasconcelos
(1) Esta correspondência foi publicado por Paulo Ferreira - Correspondance de quatre artistes portugais. Almada-Negreiros, José Pacheco, Souza-Cardoso, Eduardo Vianna avec Robert et Sónia Delaunay. Contribution à l'histoire de l’art moderne portugais (années 1915-1917), Paris, Presses Universitaires de France, (1979, 1981), edição apoiada pela Fundação Calouste Gulbenkian (Publications du Centre Culturel Portugais).
(2) Nous irons jusqu'au soleil, Paris, Èditions Robert Laffont, 1978, p. 74.
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