Morreu recentemente Urbano
Tavares Rodrigues.
Nunca comprei nenhuma das
suas obras literárias, talvez que por razões imprevisíveis, ou outras
inconfessáveis. Mas, apesar de nunca ter ainda decidido apreciar o seu discurso
escrito, os nossos percursos terrenos tiveram algumas tangentes, as mais
frequentes em “troca de ideias” sentados lado a lado em cadeiras da mesma
barbearia onde ambos durante muitos anos estivemos fidelizados, até ela
encerrar depois de atingida pelo grande incêndio que destruiu o velho Chiado, e
cada um dos seus empregados ter ficado disperso por diferentes locais.
Correndo o risco de destapar a
profundidade de algum texto romanceado ou friccionado de Urbano Tavares
Rodrigues, não posso perder uma pequena e curiosa parte da minha memória que
com ele se relaciona relatando mais abaixo uma curta história que não só ouvi
contar, como pude constatar o seu contexto.
Diz-se, que a morte de um
ser humano é o equivalente ao desaparecimento de uma biblioteca, mas no caso do
Urbano há uma parte da sua “biblioteca” que ele deixou dispersa por inúmeros
documentos. Acredito que ainda venha a ser possível encontrar uma forma de transferir
a informação acumulada no nosso cérebro para um registo físico, quem sabe se
debaixo de hipnose, e evitar assim que as memórias dos acontecimentos mais
importantes das nossas vidas, que avivamos e não escrevemos se percam para
sempre, mas não vou ao ponto de acreditar na possibilidade da “transferência”
de imagens, embora também seja bem possível que o nosso raciocínio se
desenvolva relacionando informação residente em arquivos todos conservados,
digamos que na mesma “linguagem”.
A paixão pela arqueologia,
fez com que tenha passado horas incontáveis de nariz no chão numa pequena
parcela de terreno mesmo junto ao Rio Ardila, um afluente do Guadiana, onde os
trabalhos agrícolas de sequeiro intensivo entremeados com culturas de regadio
faziam em cada ano aflorar os vestígios materiais de uma pujante ocupação
humana ocorrida entre o Neolítico Final e o início do Calcolítico, parcela essa
integrante da chamada Quinta da Esperança, propriedade da Família de Urbano Tavares
Rodrigues. O local e quase tudo o que lhe era limítrofe, oferecia um leque
quase inesgotável de formas ocupativas do corpo e da mente, como um belo
pesqueiro no rio onde em Família pescámos achegã.
Se a ocupação pré-histórica
assentou ali talvez pelas condições especiais oferecidas pela Natureza para a transposição
das margens do rio, esse percurso prolongou-se nos milénios, e lá ficou
implantada a estrada Romana que ligava Arucci (Moura) a Ébora (Évora), e
portanto era exigível nessa época Romana a presença das “passadeiras” talhadas em grandes blocos de pedra, que permitiam atravessar o rio fora do Inverno, muito
próximo de um presumível Monumento de culto Romano com vestígios há anos atrás ainda
espalhados pelo solo. No local, mesmo junto às “passadeiras”, também foi
edificada uma “atalaia” ou “burgue”, que se diz ter feito parte do sistema
defensivo Lusitano face a Castela e cuja estrutura está muito bem conservada, e
ainda a casa de um barqueiro dos tempos modernos que oferecia um atravessamento
tripulado para a “outra margem”, como diria a canção.
Durante as inúmeras
visitas à Quinta da Esperança, apenas conheci os seus Caseiros, umas pessoas
simples e amabilíssimas, que sempre encontrei vestidos de negro, e que nos davam
curtos abrigos das chuvas e dos calores, matavam-nos a sede, adocicavam-nos com
uma bela laranja ou mitigavam as agruras das caminhadas com uma fatia de pão
alentejano acompanhado de umas suculentas azeitonas.
Sendo o Ardila um Rio muito
“velho”, as suas margens mostram os sinais das transformações ocorridas durante
a sua longevidade, e a Quinta da Esperança incorpora toda essa singularidade,
traduzida na qualidade das margens de aluvião, e nos terraços de cascalho onde
se desenvolveu o olival. A propriedade rústica sólida e ampla era sóbria e
estava implantada em dois núcleos, um habitacional e outro agrícola separados
por um largo calçadão empedrado construído com seixos do rio. Como é normal nos
Montes alentejanos, a residência dos caseiros fica na extremidade da dos proprietários
e esta em frente das cavalariças e dos abrigos para as alfaias.
Como relato
mais fiel, fica a história que os Caseiros uma tarde me contaram sobre a Quinta ter
servido nos tempos da ditadura para abrigo de pessoas perseguidas quer pela
polícia política do regime, quer pelo exército franquista, consubstanciado num esconderijo
existente por baixo do chão em mármore, numa ampla sala de jantar cuja entrada
muito bem disfarçada se fazia mesmo ao seu centro por debaixo de uma grossa carpete sob uma enorme e
pesada mesa em madeira, na qual a Família habitualmente comia em conjunto.
Até que Urbano Tavares Rodrigues
e os Irmãos se desfizeram da propriedade e da residência temporária de Família,
todos os Natais, partindo de Vila Verde de Ficalho, condicionados apenas pelo rigor do Inverno e portanto com
maior ou menor dificuldade para percorrer o caminho entre Moura e Porto Mourão,
assim “se chama” o sítio, íamos levar um Bolo-Rei àquela gente isolada do
bulício das cidades, para além de nunca deixarmos de aproveitar uns minutos
para dar uma vista de olhos pelos campos humedecidos. Campos esses, onde o Dr.
Fragôso de Lima, um importante arqueólogo de Moura, havia reconhecido o
contexto arqueológico neolítico e de onde segundo vários relatos recolheu
largas dezenas de instrumentos líticos que terão feito parte do espólio das
colecções que originalmente estiveram no núcleo expositivo da Biblioteca
Municipal e que na transição para o novo Museu Arqueológico da Cidade diz-se
terem desaparecido.
Foram anos atravessados e determinados
pelas contingências da transformação social em Portugal, com constrangimentos
incomparáveis aos dos tempos mais modernos, e agora o custo do registo de
imagens que quase se reduz à aquisição de um equipamento, não se compara com os
anos 70 do século passado, e portanto apenas posso enquadrar estas palavras com
o que restou de uns diapositivos em tempos felizmente digitalizados,
transformados numas poucas imagens, embora suficientes para quem conheça o
local se situar no tempo, como será o caso de uma das minhas Filhas e de um
Amigo, protagonistas de uma das fotografias. Dizia-se que a albufeira da
Barragem do Alqueva atingiria as margens do Ardila junto à Quinta da Esperança, mas
não tendo voltado lá depois da conclusão das obras não sei se isso aconteceu,
mas se ainda puder rever este local de tão boas memórias, não deixarei esse
registo perdido apenas na minha memória física, mas perecível.