Quase nada do que se foi publicando ao longo dos séculos ficou imune às influências das correntes estéticas dominadoras das sociedades a cada momento, e que resultavam do seu próprio percurso interno ou eram provenientes de ambientes externos com vincada preponderância nos meios académicos.
Hoje, no grafismo do publicado não julgo que existam correntes estéticas preponderantes, mas o resultado do uso que cada um faz das ferramentas de design que se foram tornado quase universais.
Ao apreciar as capas de dois catálogos com setenta anos de diferença, independentemente da sua dicotomia, ainda nos quedamos pela criatividade do criador sentado a um estirador, pouco preocupado com as proporções relativas ao "padrão" A4, mas já não precisamos de que nos datem o século do folheto do Museu de Portimão.
Dos nosso jornais, que quase já ninguém lê, nem acredita no que lá vem contado, despareceram progressivamente as crónicas dos críticos das artes, e por isso a notícia de um evento dito cultural embrulha-se em considerandos colaterais sobre mecenas e "socialites", restando felizmente no que ao humor diz respeito algum cartoonistas que dissertam maioritariamente sobre a crítica social e os costumes (maus).
Não resisto a este introito para justificar a partilha de um texto que fez parte do " Catalogo Comico da exposição de BELAS-ARTES" realizada em 1915 em Lisboa na Sociedade de Belas Artes (que ainda resiste à voragem da incultura instalada), pelo que de algum modo também contem de actualidade.
Na capa, gravura de uma pintura a óleo de António Saúde, Uma rua de Alqueidão, 1934.
Caricatura dos Pintores Alves Cardoso e António Saúde, o mais baixo, da autoria de Valença, personagem central de muito do que se segue.
Capa e contra-capas do catálogo a que se refere o texto seguinte.
Antes de passarmos ao “Salon" ...
Permittam-me V. Exas que, enquanto os artistas dão dois dedos…de verniz nas suas telas, eu lhes dê dois dedos"… de conversa. Posto isto, pósto-me reverente perante V, Exas e enceto a palestra. É de remota data o dito «ninguem é propheta na sua terra». Creio-o mesmo biblico, o dito dito.
Naturalmente foi-nos deixado pelos nossos avós… em testamento, no velho ou no novo, não sei bem em qual. É sempre difficil averiguar a origem dos loqares communs e muito principalmente quando elles proveem de logares …santos. Isto de ser propheta é emprego…, publico que dá agua pela barba…prophetica ao cidadão que tem a desventura de se metter em tal aventura. Pois eu fui-o … Saibam V. Exas que, depois do famiqerado Bandarra, coube-me a sorte, não .digo grande, de ter sido propheta na minha terra, n'esta linda minha e vossa terra. Previ no prefacio e profecia do Catalogo Comico de 1914 - e não me enganei - que certos artistas peludos dariam ao … apendice caudal com as espirituosas charges do Valença, ás quaes eu dei, nas legendas, um leve arsinho da minha graça.
Para alguns dos expositores, as charges envolvidas pelo tal arsinho da minha … Graça tornaram-se em ventania … do Monte e da Penha, acabando mesmo por lhe parecer um cyclone que, ao serviço do Municipio, varria Lisboa.
E foi assim que, tornando a nuvem por Juno, viram n'um. simplicissimo Catalogo Comico, um terrivel cata … clysmo cosmico.
Se não estou em erro, quem expõe expõe-se á critica. Bem sei que é de uso e mau costume a critica amimar certos artistas com adjectivos de confecção indigesta que lhes relaxam os estomagos debeis, fazendo-lhes impar os ventres de flatulencias ruidosas de presumpção, N' este estado morbido arrotam postas de pescada e os cerebros esvaziam-se de bom senso e enchem-se de vapores estonteantes de vaidade. Depois, tudo o que não fôr um elogio declarado é urna offensa grave á sua obra e á sua personalidade e as suas sensibilidades de mimosas sensitivas vêem em tudo e por tudo, intuitos desprimorosos e offensivos.
Ora se bem me recordo, no prefacio do anno passado eu disse a V. Exas que o Catalogo Comico seria a rubrica leve, inoffensiva e risonha, vista atravez do monoculo da critica humoristica. Eu e o Valença bem assentes n' este principio e bem assentados á banca de trabalho, não arredámos um pé… da cadeira do caminho traçado. Nas charges que distribuimos pelos artistas amigos, conhecidos, desconhecidos, mestres, discipulos e amadores de ambos os sexos, nunca tivemos em mira amesquinhar os seus meritos, mas apenas fazer o que acima expuz.
A nossa critica foi recebida intelligentemente pela grande maioria dos artistas expositores e foram elles os proprios a rir-se despreocupadamente das charges. Uma minoria foi á serra a ponto … de rebuçado e a ponto de nos cerrar… as portas da exposição, não nos deixando vender o nosso peixe que em nada, certamente, prejudicaria o venderem muito bem vendida a sua hortaliça.
Aqui, ao correr do pêlo, mostrarei aos peludos como lâ fóra são criticados e caricaturadas as obras dos mestres.
Toda a gente sabe que o Quadro Le Pauvre Pêcheur, de Puvis de Chacannes, é uma obra consagrada, figurando no Musen do Luxembourg. Pois no Salon de 1881, onde elle appareceu foi tomado pelo caricaturista Stop para assumpto de uma das suas caricaturas no Journal Amusant,pela forma que aqui deixo estampada ao lado de uma reproducção do quadro.
Estou certo de que este anno a Sociedade Nacional de Bellas Artes, que tem justos fóros de esteio da Arte e não menos justos forros… de pergaminho nos annaes artisticos de Portugal, devido á sua illustre direcção, composta de pessoas de alto valor e criterio, deixará circular e vender livremente o nosso Catalogo, que tombem é, sem duvida, uma manifestação, ainda que pequena da arte nacional.
E agora, que já deve estar terminado o vernissage, fecho este prefacio e abro de par em par as portas do Salon… Comico, convidando V. Exas a entrar e a passar revista ás charges feitas por obra ... e graça do Valença e d’este vosso criado,
CARLOS SIMOES.