As promessas cumprem-se, em especial na época em que a Rosa dos Ventos nos ajudou a indicar a direcção para todos nos podermos juntar no coração do Amor, trazendo cada um uma pequena lembrança embrulhada no brilho das suas gargalhadas.
Revisitar-mos pois Amadeo, revisitá-lo em Família e antes do Natal, e relembrar a sua importância nas nossas emoções e em muitas das nossas realizações colectivas, e individuais, e quando não podia deixar de ser dele a capa da agenda cultural de Dezembro da FCG.
Entrar pela mesma porta do CAM, mas agora com convidados na sala entrada que nos recebem também com excelências cromáticas, e depois partir à redescoberta do Amadeo dos esboços, dos desenhos e por fim dos tais óleos tão intensos com que nos habituámos a ser despertados em tempos lá para trás,
e quando em vez desta escultura tínhamos aqui um banco corrido, pudemos no silêncio quebrado apenas pelo ranger à nossa volta das solas de borracha, ler o Público, na altura um Jornal na verdadeira accepção da palavra, logo a seguir ao fim do almoço volante e antes de cumprirmos a segunda parte das obrigações profissionais do dia.
Um Amadeo que conhecemos, um pintor sem nenhum enigmatismo no seu trabalho, e ainda um outro que ainda falta continuar a descobrir, e embora a obra pareça estar ali quase toda como nunca, haverá sempre um traço novo que aparenta ter acabado de ser riscado pelas musas da inspiração dos acasos.
Outras obras que nesta ocasião dão corpo à visão do CAM sobre a Arte Moderna Portuguesa, acompanhando Amadeo, também provocam todas as diferentes sensibilidades dos visitantes, porque entre estilos, arrojos e outras razões, a algumas delas foi dado título, e outras ficaram sem ele, explicadamente.
Por fim, faz-se a despedida da exposição através das cores fortes do Jardim, que reclama por dois dedos de conversa com alguns dos raios do sol tímido do Inverno que animam os termómetros da simulação atmosférica.
E agora, finalmente o catálogo, em Português.
SOB O SIGNO DE AMADEO: UM
SÉCULO DE ARTE
Nesta exposição mostra-se pela primeira vez a quase totalidade do espólio de Amadeo de Souza-Cardoso (Manhufe, 1887 - Espinho, 1918), o pintor português que foi precursor do modernismo e uma das âncoras iniciais da coleção do CAM. Foi no final da década de 50 do século passado que começaram as aquisições para o que viria a ser o acervo do CAM que abriu ao público a 25 de julho de 1983.
Números e datas, eis algo que encontrarão com frequência ao longo deste texto, os aniversários convocam inevitavelmente esta compulsão para a contagem e para o balanço. Nestes trinta anos a coleção atingiu cerca de dez mil obras. As visitas guiadas mensais às reservas, que se prolongarão durante um ano, são uma oportunidade de o público contactar com o acervo de um modo mais extenso e também íntimo.
Sob o Signo de Amadeo: Um Século de Arte, apesar de ocupar todo o espaço do edifício do CAM, mostra somente cerca de cinco por cento da coleção numa viagem por todo o século XX. Uma viagem com portos pré-definidos; uma atenção particular à representação do corpo em ação e às obras conotadas com a performance, que é uma das linguagens mais disruptivas e significativas da passagem da arte moderna para a arte contemporânea na nave; na primeira sala, o diálogo entre a arte britânica e portuguesa, uma das especificidades desta coleção, que é apresentado com foco no registo da arte pop; na galeria 1, as obras-primas incontornáveis do acervo, que permitem uma sinopse de todo o século XX até hoje; na sala polivalente, a coleção de filme e vídeo; na sala de exposições temporárias, o palco e a teatralidade na modernidade; o grande modernista Amadeo na galeria 01, onde em novembro decorrerá um colóquio internacional organizado pelo Instituto de História de Arte e pelo Centro de Estudos de Comunicação e Linguagem, da Universidade Nova de Lisboa. O colóquio contextualizará a obra do pintor: no período em torno da I Guerra Mundial, entre o cosmopolitismo de Paris e a ruralidade senhorial de Manhufe, entre os vários movimentos e técnicas vanguardistas, criando uma linguagem única, contribuindo para que a recente historiografia, finalmente atenta à produção periférica, estabeleça paralelos com outras geografias artísticas.
Na celebração de trinta anos, para além de se mostrar o acervo quis-se também sublinhar o lugar, hoje, do museu como laboratório, espaço de criação e risco, encomendando a Rodrigo Oliveira (Sintra, 1978) e Carlos No (Lisboa, 1967), obras inéditas, respetivamente para a fachada do edifício e para o hall, com a organização em paralelo de um ciclo de performance a decorrer entre outubro e dezembro, que se inicia com um precursor deste registo, Alberto Pimenta (Porto, 1937) e termina com Isabel Carvalho (Porto, 1977), a residirem Berlim com uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian.
A eleição da performance como uma das linhas de programação e reflexão deve-se ao facto de ser um registo que convoca a questão das vanguardas, já que foi no seu seio que nasceu. As vanguardas atacaram a instituição artística pelo questionamento do conceito tradicional de obra de arte, defendendo a reintegração na arte de uma praxis vital. Ou, se quisermos, da vida e do quotidiano, tendo, por consequência, recusado a noção metafisica de artista. O conceito de vanguarda é retirado de uma determinada conceção de moderno - aquela que identifica moderno com «não-objetividade» - e, dentro desta, a performance é sem dúvida uma radicalização na medida em que com ela termina a figuração, termina a matéria na obra de arte, constituindo-se como linguagem totalmente baseada em conceitos e ações.
A performance, do ponto de vista estritamente teórico, levanta uma série de problemas que derivam de a mesma ser atravessada por tensões (e premissas) fundamentais, que se apresentam maioritariamente como binómios: arte-vida, arte-técnica, corpo da obra igual a corpo do artista.
Do ponto de vista comunicacional, a performance institui uma nova relação entre emissor e recetor, que exige deste uma participação, não tanto no sentido de uma integração do espectador na ação mas antes algo que se aproxima mais de um registo de cumplicidade ou de anticumplicidade. Se quisermos, a performance obriga a uma implicação: emissor e recetor estão implicados no mesmo plano. Ou seja, a performance obriga o espectador a definir-se enquanto usufruidor: positivamente ou negativamente, não se passa por ela do mesmo modo que se passa frente a um quadro num museu.
Por todas estas razões, a performance coloca a arte num lugar incómodo, até porque, no início, fisicamente quase sempre, ela optou por um lugar incómodo - as ruas, os espaços degradados, os sítios informais -, onde performer e espectador estão em situação desconfortável, sem cena, palco ou plateia a dividi-los, expondo-se mutuamente.
A história do conceito de performance enquanto território artístico coincide, em boa parte, com a própria história das vanguardas. De facto, os primeiros vinte anos do século XX viram surgir quase simultaneamente três movimentos artísticos que seriam os protagonistas do que mais tarde se viria a convencionar designar por «rutura modernista» e que alterariam completamente a configuração de toda a arte do século XX: o construtivismo, o futurismo e o dadaísmo. Futurismo que ecoa em várias obras de Amadeo e, claro, na obra de Fernando Pessoa, o poeta que Almada Negreiros (São Tomé e Príncipe, 1893 - Lisboa, 1970) imortalizou em retrato pintado em 1954 e 1964. De facto, o elogio da máquina e do movimento tem em Portugal, na poesia de Fernando Pessoa - ou melhor, na do seu heterónimo, o engenheiro naval Álvaro de Campos - e em Mário de Sá-Carneiro, os maiores exemplos da manifestação da ideologia futurista na literatura. Recordem-se, então, passagens da «Ode Marítima»' em que à exaltação da máquina se junta o uso da figura da onomatopeia (ou como Marinetti lhe gostava de chamar, da «artilharia onornatopaica»). Só para lembrar, um pequeno excerto da consagrada «Ode Marítima»:
Quilhas partidas, navios ao fundo, sangue nos mares!
Conveses cheios de sangue, fragmentos de corpos!
Dedos decepados sobre amuradas!
Cabeças de crianças, aqui. Acolá!
Gente de olhos fora, a gritar, a uivar!
Eh-e h-e h-e h-e h-e h-e h-eh-e h-eh!
Eh-eh-eh-eh-e h-eh-e h-e h-e h-e h!
E escute-se a voz de Diogo Dória, junto ao fac-símile de Amadeo, lendo a Lenda de São Julião Hospitaleiro de Flaubert, em que igualmente o sangue jorra por todo o lado, e facilmente percebemos que estes autores que fizeram o século XX respiravam senão o mesmo ar, pelo menos os mesmos livros e referências. No entanto, recorde-se como o engenheiro-poeta Álvaro de Campos, se define a si mesmo:
E eu, que amo a civilização moderna, eu que beijo com a alma as máquinas
Eu o engenheiro, eu o civilizado, eu o educado no estrangeiro,
Gostaria de ter outra vez ao pé da minha vista só veleiros e barcos de madeira
O mesmo trânsito podemos fazer com Amadeo passando da obra de 1917 que tem no centro da tela e da ação uma máquina registadora para a obra Casinha da Casa de Manhufe, de 1913.
A rutura modernista irá ainda mais longe com o urinol de MareeI Duchamp em 1917 a tornar-se obra de arte com o título Fountain, num elogio e apologia do «já feito» ou do «já pronto»; o ready-made. A noção de ready-made tornar-se-á uma verdadeira fonte de toda a produção contemporânea e será um dos conceitos mais fortemente impulsionadores e dos mais operatórios para as futuras gerações artísticas - veja-se, de Marcelino Vespeira, (Alcochete, 1925 - Lisboa, 2002) O Menino Imperativo, de 1952: um manequim cuja cabeça é um búzio, ladeado de duas velas que na primeira apresentação da escultura estavam acesas fazendo a cera escorrer pelo corpo,
No que à relação entre arte e técnica diz respeito, o conceito de ready-made é fundamental na medida em que põe em causa de um modo frontal (e radical) a questão da mão do criador e, consequentemente, a noção de «original». A noção metafísica de arte - que fazia decorrer o valor artístico de um objeto da sua feitura manual e individualizada é completamente abalada, abrindo o campo da arte ao continente da técnica. Noções como repetição, serialidade, duplicação, não intervenção direta do artista no ato de produção artística são noções que atravessarão toda a arte do século XX e que atingem um dos seus expoentes máximos com a arte pop: veja-se o que fizeram os britânicos e nomeadamente Peter Philips (Birmingham, 1939) com For Men On/y-Starring MM and aa em 1961; e sim, MM é a mesma Marylin Monroe que AndyWarhol, a partir de 1962, introduz com recorrência na sua obra.
Do ready-made à noção de antiarte foi um pequeno passo. Ora a noção de antiarte, bem como a série de designações e atitudes precedidas do prefixo «anti» que se lhe seguiram - o antiartista, o antigosto, o antimuseu ou a antiobra - são noções fundadoras da ideologia artística que presidiu à constituição da performance.
Assim, se é verdade que o dadaísmo e o primeiro surrealismo - veja-se, de 1947, Rapto na Paisagem Povoada, de António Pedro (Cidade da Praia, 1909 - Moledo, 1966) - não se pautaram por um grande número de ações que possamos designar por performance, os conceitos que estes movimentos introduziram foram importantíssimos para a evolução do fenómeno daquele território criativo, designadamente, a noção de «autornatisrno» avançada por André Breton e a introdução dos estudos psicológicos na arte, em que a importância do sonho e dos mecanismos psíquicos da mente - veja-se de Fernando Lemos (Lisboa, 1926), a fotografia Eu (auto-retrato) de 1949-1952 - se tornarão, eles mesmos, um material utilizado pela performance, o que levou por vezes a uma falta de entendimento do processo por parte do público e da crítica, dado que o processo jogava precisamente na assistematicidade, na não narrativa, no encadeamento de temas e imagens semelhantes ao dos sonhos e ao dos incontornáveis automatismos psíquicos. Veja-se, anos mais tarde, em 1993, o aprofundamento de todas estas questões no vídeo Hipnotic Suggestion 505 de Jane & Louise Wilson (Newcastle, 1967) em que as duas gémeas artistas se submetem a uma sessão de hipnose.
Provocar o público, retirá-lo da sua postura passiva de espectador frente a um quadro pendurado na parede ou a uma escultura disposta num museu, encontrava na noção de performance a sua plena concretização. Tratava-se de inventar um novo destinatário.
A noção de museu continua hoje sujeita a debate e nomeadamente se o museu de arte contemporânea deve ter uma coleção permanente ou se, pelo contrário, deve ser um espaço que constantemente proceda à rotação de artistas e obras, a maior parte das vezes construídas especificamente para um determinado espaço, fazendo precisamente da adequação e do jogo com o lugar a natureza primeira da obra de arte.
O CAM tem tentado ser um lugar de equilíbrio entre estas duas tendências extremas. Pensamos que o museu, tal como foi concebido radicionalmente ao longo dos anos, é o lugar para guardar e conservar obras-primas e consagradas e, neste contexto, devemos uma referência à importância das doações que ao longo destes trinta anos o CAM tem recebido de artistas e dos seus familiares': para todos o nosso bem hajam. Mas o museu deve ser também o lugar em que o artista reflete a disrupção, o caos, a violência ou simplesmente a fealdade que a vida e o mundo, lá fora, testemunha e às vezes ostenta e exibe.
Os artistas, ao tomarem essa atitude frente ao espaço do museu, o que é que procuram? Cumplicidade, ou, pelo contrário, provocação ou mesmo rejeição do público? Ou ainda, simplesmente alertam-nos acerca do modo como o público, todos nós, nos devemos confrontar com uma série de problemas, sejam eles económicos, sociais, políticos ou somente artísticos?
É assim, com a coleção, mas também com interrogações, que celebramos trinta anos.
Isabel Carlos
1 Nos últimos anos foi-se instituindo no discurso crítico e historiográfico que a arte contemporânea tem como início Temporal a década de 1960 e que a arte do século XX, produzida antes dessa data, é designada como arte moderna.
2 Álvaro de Campos, Poesias, Lisboa,Ática, 1978, pp.180-181.
3 Ibidem, p. 171 .
4 Destaquem-se, por ordem cronológica, as doações de Sonia Delaunay, Lúcia Souza-Cardoso, Vieira da Silva e Arpad Szenes, do colecionador Jorge de Brito, dos pais de António Areal, o legado de Bernardo Marques e de Fernando Calhau e, mais recentemente, os de Palolo e de Hein Semke.