Estes mês, a “ minha Peça do Mês”, são duas, e vêm acompanhadas com uma outra da mesma proveniência, o Povoado Calcolítico de Porto Torrão, Ferreira do Alentejo, exposta actualmente em Beja, e cuja associação justifico nos últimos parágrafos.
(“Porto Torrão”, foi escavado por José Arnaud nos anos 90, e mais recentemente foi intervencionado de emergência, primeiro para salvaguardar a instalação de postes para uma linha de alta tensão, e numa segunda fase no âmbito do plano de rega executado pela EDIA)
Na “moderna” visão patrimonial que se vem inculcando nalgumas sociedades Europeias, o ambiente o conhecimento e a cultura têm tido vitórias inesperadas por ricochete das estratégias de ataque às sequelas da crise financeira que destruíram empregos sem fim. Nas Cidades, a recuperação do património construído a partir de avanços técnicos imparáveis vem conduzindo ao aparecimento algumas vezes inesperado de um passado relevante permitindo descobri-lo e, se essa for a visão e a vontade de proprietários e entidades oficiais, conservá-lo, e integrando esse passado nos requisitos mais mediáticos do presente que comuniquem com as novas gerações. Mas, o que será mais importante é que todos se mobilizem para compreender a onda de saturação com que as mais diversas “plataformas” procuram atingir o bem estar dos que habitam nas velhas Cidades, deixando-nos sem espaços para refletir e debater sobre quais são os patrimónios e os valores que devemos deixar como herança de um conhecimento imaterial.
As cidades antigas são museus muito especiais sem necessidade de projectos expositivos nem de vitrines, que representam a expressão de um colectivo que já não está mais presente, e a onda turística até agora imparável potenciaria o seu desenvolvimento se não estivéssemos perante uma radicalização do comércio das “marcas” que procuram ocupar, no pior sentido do termo, todos os cantos das antigas zonas de comércio dito tradicional, que levam os olhares dos apreciadores levantados para apreciar o património edificado apenas a partir de mais ou menos três metros do solo, já que os constrangimentos a que se sujeitam as governanças neoliberais (à cause da austeridade e com a ajuda da “opinião” publicada), conduzem as massas para uma separação entre o direitos à educação e à cultura, porquanto esta vem sendo galopantemente expropriada pelos mais variados sectores privados sob a capa esfíngica do mecenato, uma palavra de conceito neo-modernista.
Tudo isto, a propósito de uma visita à Capital do Baixo Alentejo, onde fui acolhido por um folheto com a seguinte introdução:
Beja é uma cidade. Mas é, também, um conjunto de cidades que, ao longo do tempo, se foram sobrepondo umas às outras. Por vezes, mudando radicalmente o aspecto da anterior; na maioria dos casos, adaptando o existente e reciclando os materiais das cidades mais antigas. Na urbe que hoje vemos é fácil encontrar testemunhos desta dinâmica; quando escavamos o seu subsolo, outros vestígios nos falam da mesma realidade. O Núcleo Museológico da Rua do Sembrano integra um conjunto de estruturas arqueológicas que permitem - apesar de se tratar de uma área restrita no conjunto da estrutura urbana de Beja - entrever alguns momentos da sua história e o modo como o espaço aí foi evoluindo. Restos inanimados que remetem para todos estes tempos sobrepostos em que seres cujas sombras aqui entrevemos viveram, lutaram, sofreram, trabalharam, amaram, sonharam os sonhos de todas as mulheres e todos os homens. Naquele local, em que a escavação da Rua do Sembrano pôs a descoberto vestígios que se estendem, cronologicamente, desde a Pré-História até à Época Contemporânea, fomos ao encontro com um “museu itinerante” da EDIA, que se vai adaptando aos ambientes e aos públicos, ali com o título “ SOB A TERRA E AS ÁGUAS 20 ANOS DE ARQUEOLOGIA ENTRE GUADIANA E O SADO EXPOSIÇÃO SOBRE O CONTRIBUTO DE ALQUEVA PARA O PATRIMÓNIO ARQUEOLÓGICO DA REGIÃO”. Sem receio de engano, posso afirmar que a esmagadora maioria dos Portugueses desconhece em concreto a profundidade da intervenção arqueológica nos Alentejos banhados e irrigados pela água que jorra do maior lago artificial da Europa, porque a Cultura ainda se continuava então a escrever com letra bem grande, vinda do começo do Tempo o que o recém eleito Secretário Geral da ONU informou os Portugueses de que “as gravuras não sabem nadar”! A EDIA, havia já apresentado no MNA em Belém uma primeira aproximação aos resultados musealizáveis das inúmeras intervenções, e vai agora sectoriando os achados por Região, dando assim a conhecer aos mais que prováveis descendentes dos Povos que os antecederam, o legado que lhes deixou mais ou menos resguardado da cobiça dos ventos e dos homens.
Naquela exposição, que serviu de estímulo para me atrever a discorrer sobre política e Museus, a disposição dos testemunhos de cerca de 250.000 anos fazia-se de uma forma cronológica da direita para a esquerda, porque a entrada assim determinava, e se nem de todos os maiores ou menores períodos em que habitualmente se vão fazendo estas narrativas se encontravam sinais materiais de conflitos entre as respectivas tribos, ou a demonstração da vivência de sociedades bem hierarquizadas, a sua existência nas sociedades contemporâneas está estudada entre nós nas amostras dos visitantes dos museus, os resultados estão acessíveis, e não disfarçam o conflito entre dois sistemas que alguns autores definem como o do museu como um repositório do narcisismo filantrópico e o museu como um espaço de encontro para reflexões culturais e históricas. Os museus, não são peças de protótipos para modelos económicos, mas agentes sociais intervenientes que podem e devem enriquecer a condição cultural, e mostrar a importância e o ensinamento que os seus acervos aportam à colectividade.
Numa exposição de arte pré-histórica, as legendas não podem por inúmeras razões, contemplar a identidade autoral, nem têm como objecto o prestígio social alcançado pela visibilidade concedida pelos novos museus aos criadores de arte contemporânea (em sentido lato), mas por detrás de cada peça exposta há um sem número de reflexões a fazer com a ajuda das ciências humanas de forma mais ampla.
Os chamados mercados de investidores, revelam um “excedente” incomensurável de capitais, e as recentes e variadas notícias sobre o Comendador Joe Berardo, invejado e odiado por muitos neoliberais, demonstram mais uma vez que sem fundos não há museus, e sem colaboração entre o Museu e a Arte não se resolvem, nem os desafios colocados pelas chamadas obras contemporâneas nem o conhecimento público das obras de arte pré-histórica que para muitos não passam de cacos, e podem viver encaixotadas nas reservas até que se “evaporem”. Quando a paranoia orçamental invade as sociedades, e os detentores do espaço comunicacional se masturbam na dialética relação do máximo equilíbrio comum entre despesa e receita (exigindo impacto positivo demonstrado), a cultura fica subordinada a uma condição de mero valor económico, fazendo-nos correr o risco de sermos incapazes de conceber um outro sistema alternativo (um Futuro) que se oponha à ocupação da importância da cultura pela tecnocracia, que primeiro condiciona a acção criativa, a seguir privatiza a obra, e para mais tarde, se lhe convier, partilha para efeitos mediáticos e consolidação do prestígio privado.
O que urge é mesmo teimar em construir um Futuro, em que os museus de arte contemporânea (em sentido infinito, pois o conceito de tempo não passa de um estratagema) obriguem a sociedade a se entender, e a sentir que a democracia não pode estar sujeita às maquinações estatísticas ou à vulgaridade da folha de cálculo, porque caso contrário a cultura e a educação regrediria meio século, e a libertação de muitos ismos, alguns à custa de guerras tinha sido um esforço em vão para os que despareceram nessas lutas. Se muitos museus são hoje mais democráticos, é porque foram capazes de articular valor cultural, defender as ciências humanas, fora da linguagem da contabilidade e valor de uso renovando o museu como um agente activo, de questionamento criativo, sobrepondo obras de arte com documentos, cópias e reconstruções.
Regressando ás “peças do mês”, a peça em exposição em Beja é um prato de bordo espessado com engobe alaranjado, e na legenda sugere-se que os 3 pares de orifícios iniciais, apenas agora visíveis 5 furos já que o prato foi recuperado incompleto, se destinariam à colocação de gatos para “consertar a peça”. Os autores da legenda fazem o paralelo com os “gatos” tradicionais colocados no século passado para consertar loiça em que eram usados metais variados. Ora, no calcolítico os metais “disponíveis” eram os nobríssimos bronze e ouro, o que não é aceitável, pelo que a união para além de uma resina só se explicará recorrendo a fibras vegetais, de duração e eficácias duvidosas, e mesmo assim atribuindo ao prato um valor incompreensível.
A imagem seguinte, é de uma das peças do mês que escolhi para confronto com esta polémica, já que tratando-se também de um fragmento de prato de bordo espessado mas com uma belísima decoração impressa do período Campaniforme, este sim talvez “justificasse” uma reparação pelo seu eventual significado cerimonial, mas “recuperar” um liso só talvez por ter pertencido a um importante antepassado!
A última imagem, é também um bordo de um vaso com decoração Campaniforme impressa em bandas com um “pente” como instrumento auxiliar, com a particularidade de ter um furo com uma secção cónica que poderá ser explicada pela fricção de um fio de suspensão, já que tal como no “prato de Beja” não se observam traços de desgaste de um ventual “gato”. Uma das caracetrísticas dos vasos campaniformes é a diversidade decorativa, incisa ou impressa, com alguns padrões comuns, e em determinados conjuntos com o bordo também decorado como é este o caso.
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